“Já não és o marido dela” – Como uma frase abalou os alicerces da minha nova família
— Não és mais o marido dela, João! — A voz da Marta ecoou pela sala, cortando o ar como uma lâmina. O meu filho, Tomás, parou de brincar com os legos e olhou para mim, olhos arregalados, como se procurasse em mim uma resposta que eu próprio não sabia dar.
Senti o sangue gelar-me nas veias. Aquelas palavras, tão simples, tão cruas, tinham o peso de um trovão. Não era a primeira vez que discutíamos sobre a memória da Leonor, a minha falecida mulher, mas nunca assim. Nunca com esta frieza.
— Marta… — tentei começar, mas ela já estava de costas para mim, a arrumar pratos na cozinha com uma força desnecessária. O tilintar da loiça era quase tão agressivo como as suas palavras.
O Tomás levantou-se devagar e veio sentar-se ao meu lado no sofá. Tinha sete anos e já conhecia demasiado bem o silêncio pesado dos adultos. Peguei-lhe na mão, tentando transmitir-lhe uma segurança que eu próprio não sentia.
A Marta entrou de novo na sala, olhos vermelhos, respiração acelerada.
— Não aguento mais viver com um fantasma entre nós — disse ela, a voz embargada. — Eu amo-te, João, mas tu continuas preso à Leonor. Às vezes sinto que nunca vou ser suficiente para ti… nem para o Tomás.
Fiquei calado. Como explicar-lhe que o amor pela Leonor não era uma escolha? Que a dor da sua ausência era como uma sombra que me seguia para todo o lado? Que cada aniversário, cada Natal, cada pequeno gesto do Tomás me fazia lembrar dela?
— Eu tentei… — continuou a Marta, agora mais baixa. — Tentei aceitar as fotografias dela na casa, as histórias que contas ao Tomás antes de dormir… Mas hoje, quando disseste que ainda sentias falta dela… — A voz dela falhou. — Senti-me invisível.
O Tomás apertou-me a mão. Olhei para ele e vi nos seus olhos a mesma tristeza que sentia em mim. Ele também sentia falta da mãe. E também precisava de mim inteiro.
A Marta saiu de casa nessa noite. Disse que precisava de espaço para pensar. Fiquei sozinho com o Tomás, o silêncio entre nós tão denso que quase sufocava.
Na manhã seguinte, preparei-lhe o pequeno-almoço em silêncio. Ele olhou para mim e perguntou:
— O que é que vai acontecer agora?
Não soube responder-lhe. Disse apenas:
— Vamos ficar bem, filho. Prometo.
Mas nem eu acreditava nisso.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas vazias. Levei o Tomás à escola, fui trabalhar no escritório de contabilidade em Lisboa, voltei para casa e preparei o jantar só para dois. O telefone tocava às vezes — a minha mãe preocupada, o meu irmão a perguntar se precisava de alguma coisa — mas eu não tinha vontade de falar com ninguém.
À noite, deitava-me na cama onde outrora dormira com a Leonor e depois com a Marta. O lado dela vazio parecia maior do que nunca.
Uma semana depois, a Marta ligou-me. Queria conversar.
Encontrámo-nos num café perto do rio Tejo. Ela estava diferente: mais magra, olheiras fundas.
— João… — começou ela, mexendo nervosamente no café. — Eu amo-te. Mas não posso continuar a viver numa casa onde sinto que sou sempre a segunda escolha.
— Não és — tentei argumentar. — Só… só preciso de tempo. O Tomás também.
Ela abanou a cabeça.
— O tempo não apaga o passado. E tu não queres apagar a Leonor. Eu compreendo isso… mas não sei se consigo viver assim.
Ficámos em silêncio durante longos minutos. Lá fora, Lisboa continuava indiferente ao nosso drama: turistas tiravam fotografias ao elétrico 28, um grupo de miúdos jogava à bola no passeio.
— E se tentássemos terapia? — sugeri. — Para nós os dois… ou em família.
Ela sorriu tristemente.
— Já pensaste se é justo para mim? Para ti? Para o Tomás? Ele precisa de estabilidade…
Nesse momento percebi: talvez estivesse a tentar colar pedaços partidos de uma vida que já não existia.
Voltei para casa sozinho. O Tomás estava na sala a ver desenhos animados. Sentei-me ao lado dele e puxei-o para o colo.
— A Marta vai voltar? — perguntou ele baixinho.
Engoli em seco antes de responder:
— Não sei, filho. Mas vamos ficar juntos, está bem?
Ele assentiu e encostou-se a mim.
Nessa noite sonhei com a Leonor. Ela sorria-me do outro lado de uma rua movimentada e acenava-me para atravessar. Mas eu não conseguia mover-me; os pés presos ao chão como se fossem raízes.
Acordei sobressaltado e fui até à janela do quarto do Tomás. Ele dormia tranquilo, abraçado ao urso de peluche que era da mãe.
No dia seguinte decidi procurar ajuda profissional. Marquei consulta com uma psicóloga familiar em Campo de Ourique. No consultório, contei-lhe tudo: a morte súbita da Leonor num acidente de carro há três anos; o desespero dos primeiros meses; o medo de nunca mais conseguir amar; o alívio e depois a culpa quando conheci a Marta; as tentativas falhadas de construir uma nova família; as discussões; o vazio.
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— João, o luto não tem prazo de validade. Mas também não pode ser uma prisão perpétua. O Tomás precisa de um pai presente no agora… e tu precisas de te permitir ser feliz outra vez.
Saí dali com mais perguntas do que respostas.
Nas semanas seguintes tentei mudar pequenas coisas: guardei algumas fotografias da Leonor numa caixa especial; comecei a sair mais com o Tomás; aceitei convites dos amigos para jantar; inscrevi-me num grupo de pais solteiros em Lisboa.
A Marta ligou-me algumas vezes. Conversámos sobre tudo e sobre nada: como estava o trabalho dela no hospital de Santa Maria; como estava o Tomás na escola; se já tinha conseguido dormir melhor à noite.
Um dia convidou-nos para lanchar no jardim da Estrela. O Tomás ficou radiante ao vê-la e correram juntos até ao parque infantil como se nada tivesse acontecido.
Sentámo-nos num banco à sombra das árvores centenárias.
— Tenho saudades tuas — disse ela baixinho.
— Eu também — respondi sem hesitar.
Ficámos ali sentados em silêncio, vendo o Tomás brincar ao longe.
— Achas que algum dia vamos conseguir ser uma família? — perguntou ela finalmente.
Olhei para ela e depois para o meu filho. Pensei em tudo o que tínhamos perdido… e em tudo o que ainda podíamos construir juntos.
— Não sei — admiti. — Mas quero tentar… se tu quiseres também.
Ela sorriu pela primeira vez em muito tempo e pegou-me na mão.
Hoje ainda não sei se algum dia conseguirei conciliar totalmente o passado com o presente. Mas aprendi que amar outra vez não é trair quem partiu… é honrar a vida que ainda temos pela frente.
E vocês? Acham possível recomeçar sem esquecer quem fomos? Como se aprende a viver com saudade sem deixar que ela destrua o agora?