Inveja sob o Véu Branco: O Casamento da Minha Irmã e os Presentes do Meu Pai
— Não é justo, pai! — gritei, a voz embargada, enquanto a sala se enchia de risos e brindes. Ninguém pareceu ouvir-me, excepto a minha mãe, que me lançou um olhar reprovador do outro lado da mesa. O salão estava decorado com flores brancas e douradas, os convidados dançavam ao som de um fado suave, e eu sentia-me como uma sombra entre eles.
O casamento da Mariana era o evento do ano em Coimbra. Todos falavam do vestido dela, do catering de luxo, dos convites impressos em papel importado. Mas ninguém falava de mim. Eu, Inês, a irmã mais velha, a que sempre ficou em segundo plano desde que os meus pais se separaram. O meu pai, António, nunca escondeu que tinha uma predileção pela Mariana. “É a mais sensível”, dizia ele. “Precisa de mais atenção.” Eu cresci a ouvir isso, como se fosse uma sentença.
Na véspera do casamento, ouvi o meu pai a conversar com a Mariana no jardim. Escondi-me atrás da sebe, como fazia quando era criança. — Filha, amanhã é o teu grande dia. Quero que saibas que estou muito orgulhoso de ti — disse ele, entregando-lhe uma caixinha azul. Mariana abriu-a e os olhos brilharam ao ver o colar de ouro branco com um pendente em forma de coração. — Oh, pai! É lindo! — exclamou ela, abraçando-o.
Senti uma pontada no peito. Nunca recebi nada assim do meu pai. No meu aniversário de 18 anos, ele esqueceu-se de me ligar. No Natal passado, enviou-me uma mensagem automática pelo WhatsApp. Mas para a Mariana havia sempre tempo, sempre presentes.
No dia do casamento, tentei sorrir para as fotografias. A minha mãe sussurrou-me ao ouvido: — Não estragues o dia da tua irmã. — Como se eu fosse capaz de fazer isso! Eu só queria sentir-me parte da família, só queria que alguém reparasse em mim.
Durante o jantar, o meu pai levantou-se para fazer um brinde. — À minha filha Mariana, que sempre foi uma luz na minha vida! — Todos bateram palmas. Eu olhei para o meu copo vazio e engoli em seco. A minha tia Teresa aproximou-se e disse baixinho: — Estás bem, querida? Pareces tão distante… — Sorri-lhe com esforço. Como podia explicar-lhe aquela dor surda?
Depois do brinde, fui até à varanda para apanhar ar. Mariana veio ter comigo, ainda com o véu preso ao cabelo loiro. — Inês, estás chateada comigo? — perguntou ela, com aquela voz doce que sempre desarmava toda a gente.
— Não é contigo… — respondi, tentando conter as lágrimas. — Só me sinto… invisível.
Ela pousou a mão no meu ombro. — O pai é assim… Não é por mal. Ele só não sabe demonstrar as coisas da mesma forma contigo.
— Mas eu também sou filha dele! — rebati, a voz tremendo. — Porque é que nunca me trata como trata a ti?
Mariana suspirou e olhou para as luzes da cidade ao longe. — Talvez porque eu nunca lhe disse que precisava dele… Tu sempre foste mais forte.
Fiquei sem palavras. Sempre ouvi dizer que era forte porque não chorava à frente dos outros, porque não pedia nada. Mas será que ser forte é não precisar de amor?
A festa continuou noite dentro. Vi o meu pai dançar com a Mariana, vi-o rir com os amigos dele, vi-o distribuir abraços e promessas de viagens e presentes futuros. Senti-me cada vez mais pequena.
Quando cheguei a casa naquela noite, sentei-me na cama e chorei como há muito não chorava. A minha mãe entrou no quarto sem bater à porta.
— Inês… — começou ela, sentando-se ao meu lado.
— Porque é que ele não gosta de mim como gosta da Mariana? — perguntei-lhe, finalmente dando voz à pergunta que me atormentava há anos.
Ela passou-me a mão pelo cabelo e disse: — O teu pai tem medo de ti porque vê em ti tudo aquilo que ele não conseguiu ser: independente, determinada… Ele sente-se mais confortável com a Mariana porque ela precisa dele.
— Mas eu também preciso… — sussurrei.
Ela sorriu tristemente. — Nunca lhe mostraste isso.
Na manhã seguinte, decidi ligar ao meu pai. O telefone tocou várias vezes antes de ele atender.
— Inês? Está tudo bem? — perguntou ele, surpreso.
— Pai… Podemos falar? Só nós os dois?
Houve um silêncio do outro lado da linha.
— Claro que sim. Queres vir almoçar comigo hoje?
Fomos ao restaurante onde costumávamos ir quando eu era pequena. Sentei-me à mesa e olhei-o nos olhos pela primeira vez em muitos anos.
— Pai… Sinto falta de ti — confessei.
Ele pareceu desconcertado. — Pensei que tu não precisavas…
— Preciso sim. Preciso tanto quanto a Mariana.
Ele pegou na minha mão por cima da mesa. Pela primeira vez senti que me via realmente.
— Desculpa, filha… Fui um tolo. Sempre achei que eras forte demais para precisares de mimo.
Chorámos os dois ali mesmo, entre pratos de bacalhau e copos de vinho tinto.
Hoje olho para trás e percebo que muitas vezes as famílias são feitas de mal-entendidos e silêncios dolorosos. A inveja que senti não era só por causa dos presentes ou das palavras bonitas; era por sentir que não havia espaço para mim naquele amor partilhado.
Agora pergunto-vos: quantas vezes deixamos de dizer aquilo que sentimos por medo de parecer fracos? E quantas relações familiares se perdem por falta de um simples “preciso de ti”?