Indesejada na alegria, indispensável na dor: A história de uma mãe portuguesa

— Maria, podes ficar com a Beatriz este fim de semana? — A voz da Ana soou seca ao telefone, sem espaço para um não. Senti o coração apertar, como se cada palavra dela me empurrasse para um canto da casa onde já não cabia mais sacrifício.

Olhei para o relógio. Sexta-feira, 19h. O cheiro do arroz de pato ainda pairava na cozinha, mas o apetite tinha desaparecido. Tiago, o meu filho, estava sentado à mesa, olhos colados ao telemóvel. Desde que casou com a Ana, há dez anos, parecia que eu tinha deixado de ser mãe para ser apenas uma solução para os problemas deles.

— Mãe, a Ana perguntou se podes mesmo ficar com a Beatriz. Temos aquele jantar importante do trabalho dela… — disse Tiago, sem levantar os olhos.

Lembrei-me do dia em que me contaram do casamento. Não fui convidada. “É só para amigos próximos”, disseram. Fiquei a saber pelos vizinhos que a festa foi bonita, cheia de luzes e sorrisos. Chorei sozinha no meu quarto, com o vestido azul que comprei para a ocasião ainda pendurado na porta do armário.

A Beatriz entrou na minha vida como um raio de sol tímido. Tinha cinco anos quando a conheci. Olhou-me com desconfiança e só me chamou “avó” ao fim de muitos meses. Mas nunca fui convidada para os momentos felizes: aniversários, festas da escola, férias em família. Só me procuravam quando precisavam de ajuda.

— Claro que posso ficar com ela — respondi ao telefone, sentindo uma mistura de orgulho e mágoa.

Naquela noite, enquanto Beatriz dormia no quarto ao lado, sentei-me na sala com um chá quente entre as mãos. O silêncio era pesado. Lembrei-me do meu marido, António, que partiu cedo demais. Ele teria sabido impor limites. Eu sempre fui a conciliadora, a que dizia sim para evitar discussões.

No sábado de manhã, Beatriz acordou cedo e pediu panquecas. Fiz-lhe as panquecas como fazia ao Tiago quando era pequeno. Ela sorriu e contou-me sobre a escola, sobre uma amiga nova chamada Matilde e sobre como gostava de desenhar. Senti-me útil, amada por instantes.

À tarde, Ana ligou:
— Maria, desculpa pedir outra vez… Podes ficar com a Beatriz até amanhã? Tivemos um imprevisto.

O “imprevisto” era sempre um jantar, uma viagem ou um problema qualquer que eu nunca compreendia bem. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Claro — respondi outra vez.

Quando Tiago veio buscar a Beatriz no domingo à noite, nem entrou em casa. Ficou à porta do carro, acenou e disse:
— Obrigado, mãe! És mesmo uma querida.

Fechei a porta devagar e encostei-me à madeira fria. Senti-me vazia.

No trabalho, as colegas falavam dos netos com orgulho: “A minha filha faz questão que eu vá a todas as festas!”, “O meu genro até me pede conselhos!”. Eu sorria e mudava de assunto.

Certa noite, depois de mais um pedido da Ana para ficar com Beatriz durante as férias escolares — três semanas inteiras — decidi falar com o Tiago.

— Filho, preciso falar contigo.

Ele olhou-me surpreendido.

— O que se passa?

— Sinto que só me procuram quando precisam de mim. Nunca fui convidada para nada importante. Nem para o vosso casamento…

Tiago ficou calado. O silêncio entre nós era como um muro alto demais para saltar.

— Mãe… Não foi por mal. A Ana achou melhor assim…

— E tu? Achaste melhor assim também?

Ele não respondeu.

Durante dias não dormi bem. Sentia-me dividida entre o amor pelo meu filho e a sensação de ser usada. Lembrei-me da minha própria mãe, que dizia: “O amor de mãe é infinito, mas não é invisível”.

No domingo seguinte, Ana apareceu em minha casa sem avisar.

— Maria, precisamos mesmo de ti agora. A minha mãe está doente e não pode ajudar…

Olhei-a nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Ana, eu ajudo porque amo a Beatriz e o Tiago. Mas também preciso sentir que faço parte da vossa família nos bons momentos. Não quero ser só a solução dos vossos problemas.

Ela ficou sem palavras. Pela primeira vez vi hesitação no seu rosto.

Na semana seguinte recebi um convite: “Almoço de família no próximo domingo”. Fui sem grandes expectativas. A mesa estava posta com cuidado e Beatriz correu para me abraçar assim que entrei.

Durante o almoço falaram comigo sobre coisas banais: o tempo, as notícias, receitas novas. Mas senti que algo tinha mudado — talvez pouco, talvez só por obrigação — mas era um começo.

No final do dia, Tiago acompanhou-me até à porta.

— Mãe… Desculpa se te magoámos. Às vezes esquecemo-nos do que tens feito por nós.

Abracei-o com força e senti lágrimas quentes nos olhos.

Hoje continuo a ajudar quando posso — mas aprendi a dizer não quando preciso cuidar de mim. Ainda não fui convidada para todas as festas ou viagens em família, mas já não sou apenas indesejada na alegria e indispensável na dor.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mães portuguesas sentem o mesmo? Até onde vai o amor antes de se transformar em sofrimento silencioso? E vocês — já sentiram isto na vossa família?