Hóspede na Minha Própria Casa: Uma História de Amor, Limites e Família

— Não percebes, Marta? Aqui quem manda é a minha mãe. Tu és só uma hóspede nesta casa.

As palavras do Rui ecoaram-me na cabeça como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. Estávamos na cozinha, a luz fria do inverno entrava pela janela e a sogra, Dona Emília, cortava cebolas como se nada fosse. O cheiro forte misturava-se com o nó na minha garganta. Eu, que tinha deixado tudo para trás em Aveiro para vir viver com o homem que amava, agora era tratada como uma estranha na casa onde supostamente devia construir o meu lar.

Lembro-me do primeiro dia em que cheguei a esta casa em Sintra. Dona Emília recebeu-me com um sorriso apertado, daqueles que não chegam aos olhos. — Bem-vinda, Marta. Espero que te adaptes às nossas rotinas — disse ela, enquanto me mostrava o quarto minúsculo que partilharia com o Rui. O quarto ainda cheirava a infância dele, com posters antigos do Benfica e livros escolares amontoados num canto. Eu sorri, tentando ignorar o desconforto.

No início, pensei que era só uma questão de tempo até me sentir parte da família. Mas rapidamente percebi que havia regras não ditas. Dona Emília tinha horários rígidos para tudo: pequeno-almoço às sete, almoço ao meio-dia, jantar às oito. E eu, que sempre gostei de tomar café na cama ao fim de semana, passei a acordar com o barulho das panelas e o olhar reprovador da sogra.

— Aqui não há espaço para preguiças — dizia ela, olhando-me de cima a baixo.

O Rui, por sua vez, parecia cada vez mais distante. Quando tentava falar-lhe sobre o meu desconforto, ele encolhia os ombros.

— Marta, é só até arranjarmos o nosso apartamento. Aguenta mais um pouco.

Mas os meses passavam e nada mudava. O Rui trabalhava até tarde no escritório de advogados do pai, e eu ficava sozinha com Dona Emília e o sogro, o Senhor António, que raramente dizia uma palavra. Sentia-me invisível, como se fosse um móvel a mais na sala de estar.

As discussões começaram a surgir por coisas pequenas. Um dia, Dona Emília entrou no quarto sem bater e encontrou-me a chorar.

— O que se passa agora? — perguntou, sem qualquer traço de empatia.

— Sinto-me deslocada aqui… — murmurei, limpando as lágrimas.

Ela suspirou, impaciente.

— Marta, esta casa sempre funcionou assim. Se não gostas, fala com o Rui. Eu não vou mudar a minha vida por tua causa.

Falei com o Rui nessa noite, mas ele limitou-se a repetir:

— A minha mãe é a dona da casa, tu és só uma hóspede.

A partir desse momento, algo dentro de mim partiu-se. Comecei a evitar a família, a sair de casa sempre que podia. Passeava sozinha pelos jardins da Quinta da Regaleira, sentava-me nos bancos do Parque das Merendas e chorava baixinho, com medo de que alguém me visse.

A solidão tornou-se insuportável. Os meus pais ligavam-me todos os domingos, preocupados.

— Filha, tens a certeza que estás bem? — perguntava a minha mãe, com aquela voz doce que me fazia sentir saudades de casa.

— Estou, mãe. Só estou cansada — mentia eu, tentando não a preocupar.

Mas o cansaço era mais do que físico. Era uma exaustão da alma. Sentia-me uma intrusa na minha própria vida. Comecei a duvidar de mim mesma: será que era demasiado sensível? Será que estava a exagerar?

As coisas pioraram quando perdi o emprego. Trabalhava numa loja de roupa no centro de Sintra, mas as vendas caíram e fui dispensada. Quando contei ao Rui, ele apenas disse:

— Não faz mal, ficas por casa a ajudar a minha mãe.

Ajudar a Dona Emília era sinónimo de ser tratada como empregada. Ela dava-me listas intermináveis de tarefas: limpar o pó, passar a ferro, cozinhar pratos que eu nunca tinha feito. E se algo não ficava perfeito, vinha logo a crítica:

— A tua mãe não te ensinou a fazer arroz?

Comecei a sentir raiva. Raiva do Rui, por não me defender. Raiva de Dona Emília, por nunca me aceitar. Raiva de mim mesma, por permitir tudo aquilo.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o jantar — Dona Emília achava que o bacalhau estava salgado — fechei-me no quarto e escrevi uma carta à minha mãe. Não tinha coragem de lhe contar tudo ao telefone, mas precisava de desabafar.

“Mãe,

Sinto-me perdida. O Rui já não é o homem por quem me apaixonei. Aqui ninguém me vê, ninguém me ouve. Sinto falta de casa, de ti, do cheiro do teu arroz-doce. Não sei quanto tempo mais aguento isto.”

Guardei a carta na gaveta, sem coragem de a enviar.

Na manhã seguinte, acordei com vozes altas na cozinha. O Rui e Dona Emília discutiam.

— Ela não faz nada direito! — gritava Dona Emília.

— Mãe, deixa a Marta em paz! — respondeu o Rui, finalmente a levantar a voz por mim.

Fiquei paralisada, sem saber se devia sair do quarto ou esconder-me para sempre. Quando finalmente criei coragem para sair, encontrei Dona Emília a chorar e o Rui de braços cruzados.

— Isto não pode continuar assim — disse ele, olhando-me nos olhos. — Ou mudamos de casa, ou… — hesitou.

— Ou o quê? — perguntei, com a voz trémula.

— Ou cada um segue o seu caminho.

Senti um frio na barriga. Era este o ultimato? Depois de tudo o que sacrifiquei, agora era eu quem tinha de escolher entre o amor e a minha dignidade?

Nessa noite, não dormi. Olhei para o Rui, deitado ao meu lado, e percebi que já não era o mesmo homem. O amor tinha-se transformado em hábito, em medo de ficar sozinha. Mas eu já estava sozinha há muito tempo.

No dia seguinte, fiz as malas. Não disse nada a ninguém. Saí de casa ao amanhecer, com o coração apertado e lágrimas nos olhos. Liguei à minha mãe e pedi-lhe para me vir buscar à estação de comboios.

Quando cheguei a Aveiro, senti o cheiro do mar e do arroz-doce da minha infância. A minha mãe abraçou-me com força e eu chorei tudo o que tinha guardado durante meses.

Hoje, olho para trás e vejo aquela casa em Sintra como uma prisão dourada. Aprendi que o amor não deve ser uma luta constante por aceitação. Aprendi que o meu valor não depende da aprovação de ninguém.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem como hóspedes nas suas próprias casas? Quantas sacrificam a sua felicidade para agradar aos outros? Será que vale mesmo a pena perdermos quem somos só para não ficarmos sozinhas?