Herança Perdida: O Sonho Não Cumprido de Ser Mãe e o Amor Desfeito
— Não aguento mais, Sofia. Não consigo fingir que está tudo bem — a voz do Rui ecoou pela cozinha, cortando o som da chuva que batia nas janelas do nosso apartamento em Braga. Eu estava de costas para ele, as mãos trémulas sobre a bancada, tentando controlar a respiração. Sabia que aquela conversa era inevitável, mas nunca pensei que doeria tanto.
— O que queres que eu faça? — perguntei, quase num sussurro, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Já tentei tudo, Rui. Tudo.
Ele aproximou-se, mas não me tocou. O espaço entre nós parecia um abismo. — Não é só por mim, Sofia. É pelos meus pais, pela minha mãe… Ela não diz nada, mas eu vejo o olhar dela cada vez que vamos lá a casa. O meu pai… sabes como ele é com o apelido da família.
Apertei os olhos com força, tentando afastar a imagem da sogra a servir o bacalhau ao domingo, sempre com perguntas subtis sobre médicos e tratamentos. O meu próprio corpo tornara-se um campo de batalha, invadido por exames, hormonas e esperanças frustradas mês após mês.
O silêncio instalou-se entre nós. Lembrei-me do início, quando nos conhecemos na universidade do Minho. Rui era divertido, espontâneo, fazia-me rir até às lágrimas. Nunca falávamos de filhos; falávamos de viagens, de sonhos partilhados, de uma vida juntos. Mas depois do casamento, a pressão começou a crescer — primeiro em comentários inocentes da família, depois em perguntas diretas dos amigos: “Então, para quando o rebento?”
— Achas que eu não sinto? — rebati, virando-me finalmente para ele. — Achas que não me dói cada vez que vejo uma mulher grávida na rua? Ou quando a tua irmã me mostra fotos dos miúdos?
Rui passou as mãos pelo cabelo, frustrado. — Não é isso… Eu só…
— Só queres alguém para continuar o teu nome — interrompi, a voz embargada. — E eu não consigo dar-te isso.
Ele desviou o olhar. Pela primeira vez, vi ali não só o meu marido, mas um homem esmagado pelo peso das expectativas alheias. E eu? Eu era apenas o reflexo da minha própria insuficiência.
Os meses seguintes foram um arrastar penoso de tentativas e desilusões. Consultas em Lisboa com especialistas caros, tratamentos dolorosos, noites em claro a pesquisar fóruns na internet. A cada resultado negativo, Rui afastava-se mais um pouco. Começou a chegar tarde do trabalho; evitava-me no sofá; as conversas resumiam-se ao trivial.
A minha mãe ligava todos os dias. “Filha, tens de ter esperança. Deus sabe o que faz.” Mas eu sentia-me vazia, incapaz de acreditar em milagres. O meu pai evitava o assunto; limitava-se a dar-me palmadinhas nas costas quando eu ia lá jantar.
Uma tarde de sábado, depois de mais uma discussão sem sentido sobre as finanças do mês (mas no fundo era sempre sobre o mesmo), Rui saiu de casa sem dizer para onde ia. Fiquei sozinha na sala, rodeada pelas fotografias do nosso casamento e das férias felizes no Algarve. Peguei numa delas — estávamos abraçados na praia da Comporta, sorrisos genuínos antes de tudo isto começar.
O telefone tocou. Era a minha amiga Marta.
— Sofia? Precisas de sair daí. Vem ter comigo ao café do costume.
Enfiei um casaco e fui. Marta esperava-me com dois cafés e um pastel de nata. Olhou para mim com aquela sinceridade desarmante que só os amigos de infância têm.
— Sabes… — começou ela — O meu primo João e a Ana também passaram por isso. Quase se separaram. Mas decidiram adotar.
Balancei a cabeça negativamente. — Rui nunca aceitaria isso. Para ele tem de ser “do sangue”.
Marta suspirou. — E tu? O que é que tu queres?
Fiquei sem resposta. Ninguém me perguntava isso há meses.
Voltei para casa já noite cerrada. Rui estava sentado à mesa da cozinha, olhar perdido num copo de vinho.
— Temos de decidir o que vamos fazer — disse ele sem rodeios.
— Decidir o quê? Se continuamos juntos?
Ele assentiu lentamente.
— Não quero obrigar-te a nada — continuou Rui — Mas não posso viver assim para sempre…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. — Então é isso? Anos juntos e acabamos porque não posso dar-te um filho?
Ele levantou-se abruptamente. — Não é só isso! É tudo! Somos dois estranhos nesta casa! Eu já nem sei quem somos!
A discussão prolongou-se noite dentro. Palavras duras foram ditas; mágoas antigas vieram à tona. No fim, ficámos ambos exaustos e em silêncio.
Na manhã seguinte, Rui fez as malas e saiu. Disse que ia ficar uns tempos em casa dos pais para pensar.
Os dias passaram lentos e cinzentos. O apartamento parecia maior sem ele; cada divisão ecoava memórias felizes e promessas quebradas. A família dele ligava-me pouco; os meus pais tentavam animar-me sem sucesso.
Uma noite, sentei-me no chão da sala com todas as cartas e fotografias dos últimos dez anos espalhadas à minha volta. Chorei até não ter mais lágrimas.
O divórcio foi inevitável. Rui nunca voltou realmente para casa; as conversas tornaram-se burocráticas e frias. No tribunal de Braga, assinei os papéis com mãos trémulas enquanto ele evitava olhar-me nos olhos.
Durante meses vivi como uma sombra de mim mesma. Recusei convites dos amigos; afastei-me da família; mergulhei no trabalho até à exaustão.
Foi só quando reencontrei Marta num passeio pelo Bom Jesus que comecei a sentir vontade de respirar outra vez.
— Sabes… — disse ela enquanto subíamos as escadas do santuário — A vida nem sempre segue o caminho que planeámos. Mas ainda és tu quem decide o próximo passo.
Olhei para o céu cinzento e pensei em tudo o que perdera: um marido, um sonho, uma família por construir. Mas também percebi que ainda tinha algo: a mim mesma.
Hoje vivo sozinha num pequeno apartamento no centro do Porto. Ainda dói ver famílias felizes na rua ou ouvir risos de crianças no parque da Cordoaria. Mas aprendi a encontrar alegria noutras coisas: nos livros que leio ao fim da tarde; nas conversas longas com amigos; nos passeios junto ao Douro ao pôr-do-sol.
Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou sentir-me completa? Ou será que somos todos feitos das ausências que carregamos?
E vocês? Acham que o amor pode sobreviver à pressão das expectativas familiares? O que fariam se estivessem no meu lugar?