Herança de Sangue Estranha: A História de Maria de Viseu

— Maria, precisamos conversar. — A voz dele era seca, quase cortante, e ecoou pelo corredor frio da casa. Eu ainda segurava o lenço encharcado de lágrimas, sentada na beira da cama onde o António dormira pela última vez. O funeral tinha acabado há poucas horas e os vizinhos já se tinham ido embora, deixando-me sozinha com o vazio e com aquele estranho à porta.

Levantei-me devagar, sentindo o peso do luto nos ossos. O homem à minha frente era alto, de cabelo grisalho e olhos duros. Chamava-se Joaquim e era, supostamente, o pai do António – um nome que nunca se pronunciava cá em casa. O António sempre dizia que não tinha pai, que a mãe dele, a Dona Rosa, tinha criado tudo sozinha. Mas agora ali estava ele, com um envelope na mão e uma expressão que misturava desprezo e impaciência.

— Não sei o que quer de mim — respondi, tentando manter a voz firme. — O António nunca falou de si.

Ele sorriu de lado, um sorriso amargo. — Pois devia ter falado. Vim tratar dos assuntos do meu filho. Esta casa é minha por direito.

O chão pareceu fugir-me dos pés. A casa? A nossa casa? Aquela onde eu e o António criámos os nossos dois filhos, onde cada parede guardava memórias de risos e discussões, de noites frias e manhãs cheias de esperança?

— O senhor não tem direito nenhum! — gritei, sentindo a raiva misturar-se ao desespero. — O António trabalhou uma vida inteira para pagar esta casa!

Ele encolheu os ombros. — Os papéis dizem outra coisa. O terreno era meu, nunca foi registado em nome dele. Agora que ele morreu, passa para mim.

Senti as pernas fraquejarem. Atrás de mim, ouvi passos apressados: era a minha filha mais velha, a Inês, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Mãe, o que se passa? — perguntou baixinho.

Olhei para ela e depois para o Joaquim. — Nada, filha. Vai lá para dentro.

Mas ela ficou ali, imóvel, como se pressentisse que algo terrível estava prestes a acontecer.

O Joaquim não se mexeu. — Dou-vos uma semana para saírem. Não quero problemas.

Quando ele saiu, batendo a porta com força, caí no chão e chorei como nunca tinha chorado na vida. A Inês ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me.

— Mãe, não vamos deixar que ele nos tire daqui — sussurrou ela.

Mas eu não sabia como lutar contra aquilo. Não tinha dinheiro para advogados, nem família que me pudesse ajudar. O meu irmão mais novo estava emigrado em França e só mandava notícias pelo Natal; os meus pais tinham morrido há anos. Só me restavam os meus filhos e aquela casa cheia de dívidas e recordações.

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada à mesa da cozinha a olhar para as contas por pagar e para as fotografias do António sorridente com as crianças ao colo. Lembrei-me das histórias que ele contava sobre a infância difícil, sobre como a mãe fazia tudo para pôr comida na mesa enquanto o pai andava desaparecido pelos cafés da vila.

No dia seguinte fui falar com a Dona Rosa. Ela abriu-me a porta com um olhar cansado mas afetuoso.

— Maria… já soube do Joaquim? — perguntou logo.

Assenti em silêncio.

— Ele sempre foi assim — disse ela, suspirando. — Nunca quis saber do filho enquanto era vivo. Agora só quer saber do dinheiro.

— E eu? O que faço agora? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem outra vez.

Ela pegou-me nas mãos. — Não deixes que ele te tire tudo. O António queria que vocês ficassem bem. Eu vou contigo à conservatória amanhã. Vamos ver o que se pode fazer.

Na manhã seguinte fomos juntas ao centro de Viseu. A funcionária olhou para os papéis e abanou a cabeça.

— O terreno está registado em nome do senhor Joaquim desde 1978. A casa foi construída depois… mas sem licença nem registo em nome do António.

Senti um nó no estômago. Tudo aquilo era uma armadilha legal da qual eu não sabia sair.

Nos dias seguintes tentei falar com advogados da vila, mas todos diziam o mesmo: sem documentos, não havia muito a fazer. Os vizinhos começaram a cochichar quando me viam na rua; uns ofereciam palavras de consolo, outros apenas olhares de pena.

A Inês começou a faltar às aulas. O meu filho mais novo, o Miguel, fechou-se no quarto e deixou de falar comigo. A tensão em casa era insuportável; discutíamos por tudo e por nada.

Uma noite ouvi-os a falar baixinho no quarto:

— E se formos viver com a avó? — sugeriu o Miguel.

— Não quero sair daqui — respondeu a Inês teimosamente. — Esta é a nossa casa!

No dia seguinte decidi enfrentar o Joaquim de frente. Fui até à tasca onde ele costumava passar as tardes e sentei-me à mesa dele sem pedir licença.

— O senhor não tem vergonha? — perguntei-lhe com voz trémula mas decidida. — Nunca quis saber do seu filho e agora quer tirar-nos tudo?

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez sem desviar o olhar.

— A vida nunca foi fácil para mim também — disse ele baixinho. — Mas isto é negócio, Maria. Não é pessoal.

— Para mim é pessoal! — respondi quase a gritar. — Isto é a minha vida! São os meus filhos!

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Se me deres metade do valor da casa em dinheiro… talvez possas ficar cá — murmurou finalmente.

Ri-me amargamente. — E onde é que acha que vou arranjar esse dinheiro?

Ele encolheu os ombros outra vez e virou-se para o copo de vinho.

Saí dali com uma raiva surda no peito. Passei a noite em claro a pensar em todas as formas possíveis de arranjar dinheiro: vender as poucas jóias da família, pedir um empréstimo ao banco (que provavelmente me seria negado), pedir ajuda ao meu irmão em França…

No dia seguinte liguei-lhe finalmente:

— Ó Rui… preciso da tua ajuda…

Ele ouviu-me em silêncio e depois suspirou:

— Maria… eu também não estou bem aqui… mas vou ver o que posso fazer…

Os dias passaram lentos e pesados como chumbo derretido. O Joaquim começou a aparecer cada vez mais vezes à porta, sempre com aquele ar impaciente de quem espera apenas pelo momento certo para nos expulsar.

Uma tarde encontrei-o no quintal a medir as paredes com uma fita métrica.

— O que está aqui a fazer? — perguntei furiosa.

— Só estou a ver quanto vale isto tudo…

Nesse momento perdi a cabeça:

— Saia daqui! Já chega! Não tem vergonha nenhuma!

Ele olhou-me com uma tristeza inesperada nos olhos.

— Sabes… eu também já perdi tudo uma vez…

Mas eu não queria ouvir desculpas nem histórias antigas. Queria apenas proteger os meus filhos e manter aquilo que restava da nossa família.

Naquela noite sentei-me com eles à mesa e falei abertamente:

— Filhos… pode ser que tenhamos de sair daqui… mas prometo-vos uma coisa: vamos ficar juntos, aconteça o que acontecer.

A Inês chorou baixinho; o Miguel abraçou-me sem dizer nada.

No fim de contas, foi o Rui quem me salvou. Mandou dinheiro suficiente para pagar metade do valor da casa ao Joaquim – dinheiro suado de anos nas obras em Lyon – e assim consegui um acordo informal com aquele homem duro e perdido no seu próprio passado.

Quando finalmente assinei os papéis na conservatória, senti um alívio misturado com tristeza: aquela casa já não era só nossa; era também fruto do sacrifício do meu irmão e da generosidade inesperada da família que restava.

O Joaquim desapareceu tão subitamente como tinha aparecido. Nunca mais ouvi falar dele.

Hoje olho para os meus filhos – já crescidos – e penso em tudo o que passámos juntos naquela casa cheia de cicatrizes invisíveis.

Às vezes pergunto-me: será que alguma vez somos donos verdadeiros das nossas vidas? Ou andamos sempre à mercê das escolhas dos outros?

E vocês? O que fariam se tivessem de lutar por tudo aquilo que amam?