Herança de mágoas: Quando a família se transforma num campo de batalha
— Teresa, não podes continuar assim. — A voz da minha mãe ecoou fria pela sala, enquanto ela ajeitava o xaile sobre os ombros magros. — O teu divórcio trouxe vergonha à nossa família.
Fiquei ali, de pé, com as mãos trémulas e o coração apertado. O relógio antigo marcava as dez da noite, mas o tempo parecia suspenso. O silêncio entre nós era tão denso que quase me sufocava.
— Vergonha? — repeti, sentindo as lágrimas a ameaçar-me os olhos. — Mãe, o António traiu-me durante anos! Eu aguentei tudo por vocês, pela Inês… E agora sou eu a culpada?
A minha mãe desviou o olhar para o retrato do meu pai, falecido há já dez anos. — O teu pai nunca teria permitido isto. A família é sagrada.
Nesse momento, ouvi passos no corredor. Era o Rui, o meu irmão mais novo, sempre pronto a aparecer quando se falava de assuntos sérios. Trazia consigo aquele ar de superioridade que sempre me irritou.
— Teresa, tens de perceber que a mãe está cansada. Não lhe podes dar mais desgostos — disse ele, pousando a mão no ombro dela. — E agora com a questão da casa… temos de pensar no futuro.
A casa. A maldita casa onde crescemos, onde brinquei com o Rui no quintal e onde a Inês deu os primeiros passos. Agora era apenas um símbolo de discórdia. Desde que o divórcio foi anunciado, todos pareciam mais preocupados com quem ficaria com quê do que com os meus sentimentos.
— O futuro? — perguntei, sentindo a raiva crescer dentro de mim. — O futuro é isto? Cada um a puxar para seu lado?
A Inês entrou na sala nesse momento, com o telemóvel na mão e os olhos vermelhos de tanto chorar. — Mãe, podemos falar? — pediu baixinho.
Assenti e seguimos para o meu quarto. Fechei a porta atrás de nós e sentei-me na cama.
— Não aguento mais isto — desabafou ela. — A avó só fala mal de ti, o tio Rui diz que és egoísta… Eu não sei em quem acreditar.
Abracei-a com força. — Filha, eu só quero que sejas feliz. Não deixes que te envenenem contra mim.
Ela afastou-se ligeiramente e olhou-me nos olhos. — Porque é que ninguém fala do que o pai fez? Porque é que és sempre tu a má da fita?
Não soube responder. Senti-me pequena, impotente perante aquela teia de mentiras e silêncios cúmplices. O António tinha sido sempre o filho querido da minha mãe, mesmo depois do divórcio continuava a aparecer aos domingos para almoçar com ela e com o Rui. Eu era a ovelha negra.
Na manhã seguinte, acordei com vozes exaltadas na cozinha. Vesti-me à pressa e desci as escadas.
— Não admito que fales assim da tua irmã! — gritava a minha mãe ao Rui.
— Ela quer ficar com tudo! Sempre foi assim! — respondeu ele, batendo com a mão na mesa.
— Chega! — gritei eu, incapaz de suportar mais aquela guerra.
Todos se calaram e olharam para mim. Senti-me exposta, como se estivesse nua diante deles.
— Se querem discutir sobre heranças e casas, façam-no sem mim. Eu só quero paz!
A minha mãe levantou-se devagar e aproximou-se de mim. Os olhos dela estavam cheios de lágrimas.
— Teresa… eu só queria que fosses feliz. Mas não consigo aceitar este mundo novo em que vivemos. Tudo mudou tão depressa…
Abracei-a, sentindo o corpo dela tremer nos meus braços.
— Mãe, eu também tenho medo. Mas não posso viver uma mentira só para agradar aos outros.
O Rui saiu da cozinha sem dizer palavra. Ficámos ali, eu e a minha mãe, agarradas uma à outra como duas náufragas num mar revolto.
Os dias seguintes foram um desfile de advogados, papéis para assinar e telefonemas tensos. A Inês começou a passar mais tempo fora de casa; dizia que precisava de espaço. O Rui evitava-me sempre que podia e a minha mãe fechou-se ainda mais no seu mundo de recordações.
Uma noite, sentei-me sozinha na sala escura e olhei para as fotografias antigas espalhadas sobre a mesa. Vi-me criança ao colo do meu pai, vi o Rui com um sorriso traquina, vi a Inês bebé nos meus braços. Tantas memórias felizes… Como é que tudo se tinha tornado tão amargo?
O telefone tocou. Era o António.
— Teresa… ouvi dizer que as coisas aí em casa não estão fáceis.
Respirei fundo antes de responder.
— Não estão mesmo. Mas não é nada que te diga respeito agora.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos.
— Eu sei que errei contigo. Mas não quero ver a Inês sofrer por nossa causa.
— Devias ter pensado nisso antes — respondi friamente.
Desliguei sem esperar resposta. Senti um peso enorme no peito, como se cada palavra não dita fosse uma pedra presa à minha alma.
Na semana seguinte, a minha mãe teve uma queda grave nas escadas. Fui chamada ao hospital às três da manhã; quando cheguei, ela estava pálida e frágil na cama do quarto 207.
— Teresa… desculpa tudo — murmurou ela, apertando-me a mão com força surpreendente para alguém tão debilitada.
Chorei baixinho ao lado dela durante horas. Senti que finalmente tínhamos feito as pazes, mas também sabia que nada voltaria a ser como antes.
Depois do funeral da minha mãe, reunimo-nos todos na casa da aldeia para decidir o futuro da propriedade. O Rui queria vender tudo; eu queria manter pelo menos uma parte para a Inês ter onde regressar um dia.
A discussão foi longa e dolorosa. No fim, cada um seguiu para seu lado sem olhar para trás.
Hoje vivo sozinha na casa antiga, rodeada de memórias e silêncios. A Inês visita-me de vez em quando; o Rui raramente dá notícias. Às vezes pergunto-me se valeu a pena lutar tanto por algo que acabou por me deixar tão vazia.
Será que alguma vez conseguimos perdoar verdadeiramente aqueles que mais amamos? Ou será que as feridas familiares ficam para sempre abertas? Gostava de saber o que pensam…