Fui Demasiado Dura ao Criticar o Presente Feito à Mão pelo Meu Namorado?
— É só isto? — As palavras escaparam-me antes que pudesse travá-las, ecoando pelo silêncio da sala como uma pedra lançada a um lago calmo. Miguel olhou para mim, os olhos castanhos cheios de uma esperança tímida, e eu soube imediatamente que tinha dito algo errado. Mas naquele momento, entre as velas do bolo e o cheiro doce do chocolate, tudo o que conseguia sentir era desilusão.
O presente estava ali, sobre a mesa: uma pequena caixa de madeira, polida à mão, com o meu nome gravado em letras tortas. Não era feia, longe disso. Mas não era o colar de prata que eu tinha visto na montra da ourivesaria da Baixa, nem o perfume caro que deixei escapar em conversas subtis durante semanas. Era… uma caixa. Feita por ele.
Miguel pigarreou, tentando sorrir. — Fiz isto para ti. Passei as últimas noites na garagem, depois de deitar a Matilde. Queria dar-te algo especial.
Matilde, a filha de Miguel, apareceu à porta da sala com os olhos sonolentos. — O papá fez mesmo sozinho! — disse ela, orgulhosa.
Senti um nó na garganta. Olhei para Miguel, depois para Matilde, e depois para a caixa. O silêncio pesava sobre nós como um cobertor húmido. Tentei sorrir, mas saiu-me um esgar estranho.
— Obrigada… — murmurei, sem convicção.
Miguel baixou os olhos. — Se não gostas, podes dizer. Só queria… — A voz dele falhou.
A raiva cresceu dentro de mim, inexplicável e irracional. Senti-me ridícula por me importar tanto com um presente, mas também magoada por ele não ter percebido o quanto aquele dia era importante para mim. Afinal, era o meu aniversário! Não merecia algo mais?
A noite arrastou-se num desconforto mudo. Depois do jantar, Miguel foi deitar Matilde e eu fiquei sozinha na sala, a olhar para a caixa. Passei os dedos pelas letras gravadas, sentindo cada imperfeição. Lembrei-me das mãos dele — calejadas do trabalho na carpintaria — e imaginei-o ali, sozinho na garagem fria, a tentar fazer algo bonito para mim.
Mas porque é que não me senti feliz? Porque é que não consegui ver amor naquele gesto?
Quando Miguel voltou, sentei-me ao lado dele no sofá. — Desculpa — disse ele. — Devia ter-te perguntado o que querias.
— Não é isso… — comecei, mas não sabia como acabar a frase. Não queria magoá-lo mais.
Ele suspirou. — Eu sei que não tenho muito dinheiro agora. Entre a escola da Matilde e as contas da casa… Queria dar-te algo especial, mas só consegui isto.
Senti-me ainda pior. A culpa misturava-se com a vergonha e a raiva. Porque é que tudo tinha de ser tão complicado?
No dia seguinte, acordei com mensagens das minhas amigas no telemóvel:
— Então, o Miguel surpreendeu-te?
— Mostra lá o presente!
Enviei uma foto da caixa ao grupo do WhatsApp. As respostas foram rápidas:
— Que fofo! Ele fez mesmo?
— Ai amiga… esperava mais!
— Mas é bonito! E pessoal!
As opiniões dividiam-se e eu sentia-me cada vez mais perdida. Será que estava a ser ingrata? Ou será que tinha razão em esperar mais?
À hora do almoço, liguei à minha mãe. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Filha, às vezes esperamos demais dos outros porque não sabemos dar valor ao que recebemos.
Fiquei a pensar nisso o resto do dia.
Quando cheguei a casa nessa noite, Miguel estava na cozinha a preparar o jantar. Matilde desenhava na mesa com lápis de cor.
— O papá vai fazer arroz de pato! — anunciou ela.
Sentei-me ao lado dela e olhei para Miguel. Ele evitava o meu olhar.
— Podemos falar? — perguntei baixinho.
Ele assentiu e fomos até à varanda. O ar estava frio e húmido; Lisboa parecia suspensa entre nuvens baixas e luzes distantes.
— Desculpa por ontem — disse eu finalmente. — Fui injusta contigo.
Miguel encolheu os ombros. — Só queria ver-te feliz.
— Eu sei… Só que às vezes sinto falta de ser surpreendida como antes. De sentir que sou especial…
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez desde a noite anterior. — E não és?
As lágrimas vieram sem aviso. — Sou… mas às vezes esqueço-me disso.
Miguel puxou-me para junto dele e abraçou-me com força. Senti o cheiro da madeira nas roupas dele, as mãos quentes nas minhas costas.
— Eu amo-te — murmurou ele ao meu ouvido.
Ficámos assim durante minutos, sem dizer nada. O barulho distante dos elétricos misturava-se com o som dos nossos corações acelerados.
Naquela noite, depois de Matilde adormecer, sentei-me sozinha no quarto com a caixa nas mãos. Abri-a devagar e reparei num pequeno papel dobrado lá dentro. Era um desenho feito por Matilde: eu, ela e Miguel de mãos dadas num jardim cheio de flores coloridas.
Chorei baixinho, sentindo-me ao mesmo tempo grata e arrependida.
Os dias passaram e tentei compensar Miguel pelo meu desabafo injusto. Preparei-lhe um jantar especial no fim de semana seguinte e escrevi-lhe uma carta onde lhe agradecia por tudo o que fazia por mim e pela Matilde.
Mas algo tinha mudado entre nós. Havia uma distância subtil nos gestos dele; um cuidado extra nas palavras que usava comigo. Como se tivesse medo de me desiludir outra vez.
Uma noite, depois de Matilde adormecer cedo por estar doente, sentei-me ao lado dele no sofá e perguntei:
— Ainda estás magoado comigo?
Ele hesitou antes de responder:
— Não sei… Acho que fiquei com medo de não ser suficiente para ti.
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada.
— Tu és suficiente — disse eu com convicção. — Só preciso aprender a valorizar melhor as coisas simples.
Ele sorriu tristemente. — Às vezes as coisas simples são as mais difíceis de ver.
Abracei-o com força e prometi a mim mesma nunca mais deixar as expectativas falarem mais alto do que o amor.
Hoje olho para aquela caixa todos os dias antes de sair de casa. Guardo lá dentro pequenas recordações: bilhetes de cinema, fotografias nossas, desenhos da Matilde. E sempre que me sinto tentada a desejar mais do que tenho, lembro-me daquela noite e pergunto-me:
Será que somos mesmo ingratos ou apenas humanos? Quantas vezes deixamos passar gestos de amor porque estamos demasiado ocupados a esperar por algo maior? E vocês? Já passaram por algo assim?