Fui apenas um endereço: Uma história de confiança, família e desilusão
— Não percebes, tia? Isto é o melhor para todos! — gritou Luciana, com os olhos faiscantes, enquanto eu segurava a chávena de chá com as mãos trémulas. O vapor subia, mas o frio que me percorria o corpo era mais forte do que qualquer calor que aquela bebida pudesse dar.
Nunca pensei ouvir aquelas palavras dentro da minha própria casa. Sempre fui a tia Isabel, aquela que fazia bolos ao domingo, que emprestava livros e ouvia desabafos. Depois da morte do meu irmão António, pai da Luciana, fui eu quem ficou com ela durante meses, enquanto a mãe se recompunha. Lembro-me das noites em que lhe lia histórias para adormecer, do medo que ela tinha do escuro e do conforto que encontrava no meu abraço. E agora, ali estava ela, a discutir comigo por causa de um papel — o título de propriedade da minha casa.
— O melhor para todos? Para quem, Luciana? Para ti? — perguntei, tentando manter a voz firme. O meu coração batia tão depressa que temi que ela o ouvisse.
Ela desviou o olhar, mas não recuou. — A casa está velha, tia. Tu já não tens idade para cuidar disto sozinha. Se vendermos agora, ainda conseguimos um bom dinheiro. Eu posso ajudar-te a encontrar um apartamento mais pequeno, mais fácil para ti…
Senti uma pontada no peito. Não era só a casa — era tudo o que ela representava: as memórias dos meus pais, dos meus irmãos, dos natais passados à volta da lareira. Era ali que eu me sentia segura, mesmo depois de todos partirem. E agora, a minha própria sobrinha queria arrancar-me dali como se fosse um móvel velho.
Os dias seguintes foram um tormento. Luciana ligava-me todos os dias, insistindo na venda. A minha irmã Maria começou a apoiar a ideia dela. — Isabel, pensa bem. A Luciana só quer o teu bem. E tu já não és nova…
Nova. Como se a idade me tornasse incapaz de decidir sobre a minha própria vida. Senti-me sozinha pela primeira vez em muitos anos. Os vizinhos começaram a reparar na minha tristeza. Dona Rosa, do terceiro andar, trouxe-me um bolo de laranja e sentou-se comigo na varanda.
— Não deixe que lhe tirem o chão debaixo dos pés, menina Isabel — disse ela, apertando-me a mão.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Lembrei-me do meu pai, homem de poucas palavras mas de princípios firmes. “A família é tudo”, dizia ele. Mas será mesmo?
A pressão aumentou quando recebi uma carta registada: Luciana queria avançar com um processo para me declarar incapaz de gerir os meus próprios bens. Fui ao advogado, tremendo de medo e vergonha.
— Dona Isabel, tem provas de que está lúcida e capaz? — perguntou-me ele.
— Tenho… acho eu — respondi, sentindo-me subitamente pequena.
Fiz exames médicos, fui ao tribunal. Senti-me humilhada ao ter de provar que ainda sabia quem era o Presidente da República ou quantos filhos tinha tido (nenhum). O juiz olhou-me nos olhos e perguntou:
— Sente-se capaz de viver sozinha?
— Sinto. E quero continuar a fazê-lo — respondi com toda a força que me restava.
Luciana evitava-me agora. Maria deixou de me ligar. O silêncio tornou-se ensurdecedor naquela casa cheia de ecos do passado.
Um dia, batiam à porta: era o meu sobrinho Miguel, filho da minha irmã mais nova, Helena. Trazia um saco de compras e um sorriso tímido.
— Tia Isabel… posso entrar?
Sentei-o à mesa e contei-lhe tudo. Ele ouviu em silêncio e depois disse:
— Sabe… quando era pequeno e vinha cá passar férias, sentia-me em casa como em nenhum outro lugar. Não deixe que lhe tirem isso.
Foi Miguel quem me ajudou a encontrar forças para lutar. Ele acompanhou-me às consultas, ajudou-me com os papéis do tribunal e ficou comigo nas noites em que o medo apertava.
O processo arrastou-se durante meses. Os vizinhos começaram a comentar: “A família da Isabel só quer saber do dinheiro”; “Coitada da Isabel”; “Hoje em dia ninguém respeita os mais velhos”.
No Natal desse ano, sentei-me sozinha à mesa posta para dois — como sempre fazia desde que o meu marido partira há dez anos. Olhei para o lugar vazio e perguntei-me onde tinha falhado como tia, como irmã.
Na véspera da decisão do tribunal, sonhei com o meu pai. Ele sorria-me e dizia: “Não deixes que te levem aquilo que és”.
O juiz decidiu a meu favor: estava lúcida e capaz de gerir os meus bens. Luciana não apareceu no tribunal nesse dia. Maria mandou-me uma mensagem curta: “Desculpa”.
Ganhei… mas perdi tanto ao mesmo tempo. A casa parecia maior e mais fria do que nunca.
Miguel continuou a visitar-me todas as semanas. Dona Rosa passou a trazer chá em vez de bolo. Aos poucos fui reconstruindo uma rotina — mas nunca mais confiei da mesma forma.
Às vezes olho para as fotografias antigas na estante: Luciana em criança no meu colo; Maria e eu a rir na praia; toda a família reunida à volta da mesa.
Pergunto-me se valeu a pena lutar tanto por paredes e telhado quando perdi laços de sangue pelo caminho.
E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre manter as raízes ou proteger o coração? Será mesmo o sangue mais forte do que a água?