Fugir para Sobreviver: Entre o Medo e a Esperança
— Por favor, Agostinho, não faças isso outra vez! — supliquei, a voz embargada, enquanto ele atirava o prato contra a parede. O barulho ecoou pela casa, acordando os miúdos. O João, com apenas cinco anos, apareceu à porta da cozinha, olhos arregalados de medo. A Leonor, de três, choramingava no quarto. O relógio marcava quase duas da manhã e eu sabia que aquela noite não ia acabar bem.
A minha vida tinha-se tornado um pesadelo. O Agostinho não era sempre assim. Quando nos conhecemos, era carinhoso, trabalhador, fazia-me rir. Mas depois de perder o emprego na fábrica de calçado em São João da Madeira, tudo mudou. Começou a beber mais, a descarregar em mim as frustrações, a levantar a voz, depois a mão. No início tentei desculpar: “Está em baixo, vai passar.” Mas não passou. Só piorou.
Naquela noite, quando vi o olhar dele — aquele olhar vazio, frio — percebi que se ficasse mais um minuto ali, algo terrível podia acontecer. Esperei que ele adormecesse no sofá, com a garrafa de vinho meio vazia ao lado. Peguei nos miúdos, enfiei umas mudas de roupa numa mochila e saí de casa em silêncio. O coração batia tão forte que pensei que ele ia acordar só de o ouvir.
Chovia. As ruas de Aveiro estavam desertas. O João tremia de frio e medo; a Leonor soluçava baixinho. Liguei à Agneta — minha melhor amiga desde o liceu — única pessoa em quem confiava. Ela atendeu ao segundo toque.
— Marta? O que se passa? — perguntou logo, voz preocupada.
— Preciso de ti… Não posso explicar agora… Podes abrir-me a porta? — pedi, quase sem voz.
— Claro! Vem já! — respondeu ela sem hesitar.
Corri até ao prédio dela, com os miúdos pela mão. Subi as escadas a correr. Quando bati à porta, ouvi vozes baixas do outro lado. A porta abriu-se só uma fresta e vi o Paiva — marido dela — com cara fechada.
— O que é isto agora? — perguntou ele seco.
— Preciso só de ficar aqui esta noite… Por favor… — implorei.
A Agneta apareceu atrás dele, olhos vermelhos.
— Paiva, são só umas horas… Ela não tem para onde ir! — sussurrou ela.
— Não! Já te disse! Não quero confusões cá em casa. Se o marido dela aparece aqui armado em maluco? Não quero problemas! — respondeu ele, cada vez mais alto.
A porta fechou-se na minha cara. Fiquei ali parada na escada do prédio, com os miúdos agarrados às pernas. Senti-me tão pequena, tão impotente. A Agneta chorava do outro lado da porta; eu chorava cá fora.
Desci as escadas devagarinho e sentei-me num degrau frio. O João encostou-se a mim.
— Mamã, vamos para casa? Tenho medo… — murmurou ele.
— Não podemos voltar para casa agora, meu amor… Vai ficar tudo bem… — menti-lhe.
Peguei no telemóvel e percorri a lista de contactos: mãe — impossível, ela sempre disse que “casamento é para durar”; irmã — vive em Braga e mal fala comigo desde que casei com o Agostinho; colegas do trabalho — ninguém suficientemente próximo para pedir abrigo às três da manhã.
O frio entrava-me pelos ossos. Pensei em ir à esquadra da polícia, mas tinha vergonha. “Vão achar que sou fraca”, pensei. “Que não sou capaz de proteger os meus filhos.” Mas naquele momento percebi: não era vergonha pedir ajuda. Era coragem.
Levantei-me e caminhei até à esquadra mais próxima. O polícia de serviço olhou para mim com estranheza quando me viu entrar com duas crianças a meio da noite.
— Boa noite… Preciso de ajuda… Fugi de casa com os meus filhos… O meu marido é violento… — disse-lhe, a voz trémula.
Ele chamou uma agente chamada Dona Teresa, que me levou para uma sala pequena e quente. Deu-me uma manta para os miúdos e um chá quente para mim.
— Fez muito bem em vir cá, Marta. Não está sozinha — disse ela suavemente.
Enquanto preenchia papéis e respondia às perguntas dela, senti uma mistura de alívio e vergonha. “Como é que cheguei aqui? Como é que deixei isto acontecer?”
A Dona Teresa ligou para um centro de acolhimento temporário para vítimas de violência doméstica. Uma carrinha veio buscar-nos pouco depois das quatro da manhã. Os miúdos adormeceram nos meus braços durante o caminho.
O centro era uma casa antiga nos arredores da cidade. Fui recebida por uma senhora chamada Dona Lurdes, que me mostrou um quarto pequeno mas limpo, com duas camas e um berço improvisado para a Leonor.
— Aqui está segura — garantiu ela.
Na manhã seguinte acordei com o sol a entrar pela janela e por um momento esqueci-me de tudo. Depois ouvi o João chamar por mim e lembrei-me: estava sozinha no mundo com dois filhos pequenos e sem nada além da roupa do corpo.
Os dias seguintes foram um turbilhão: entrevistas com assistentes sociais, psicólogos para os miúdos, telefonemas do tribunal para marcar audiências sobre a guarda das crianças. O Agostinho tentou ligar-me dezenas de vezes; deixei o telemóvel desligado.
A Agneta mandou-me mensagens todos os dias:
“Desculpa… Tentei convencer o Paiva… Estou aqui para ti…”
Respondi-lhe uma vez só:
“Obrigada por tentares. Preciso de tempo.”
No centro conheci outras mulheres como eu: a Sónia fugira do marido taxista que lhe partiu dois dentes; a Carla tinha três filhos e vivia ali há meses porque o ex-companheiro ameaçava raptar as crianças; a Dona Rosa era já avó e fugira do filho alcoólico que lhe batia.
Partilhávamos histórias à mesa do pequeno-almoço ou nas noites longas em que nenhuma conseguia dormir. Havia lágrimas mas também risos tímidos quando alguma criança fazia uma asneira ou quando alguém contava uma piada sobre as assistentes sociais.
Comecei a sentir esperança outra vez. Arranjei trabalho numa lavandaria perto do centro; os miúdos começaram a ir ao jardim-de-infância local. A Leonor voltou a sorrir; o João já não acordava aos gritos durante a noite.
Recebi uma carta do tribunal: audiência marcada para dali a duas semanas sobre a guarda dos filhos e medidas de proteção contra o Agostinho. Tive medo mas também senti força: estava finalmente a lutar por nós.
A minha mãe ligou-me depois de saber pela vizinha que eu tinha fugido:
— Marta… Porque não me disseste nada? — perguntou ela, voz embargada.
— Porque tu nunca quiseste ver… Sempre disseste que era normal discutir… Que eu devia aguentar… — respondi-lhe.
Ela ficou em silêncio do outro lado da linha.
— Desculpa… Não sabia que era assim tão grave…
— Agora sabes.
Ela prometeu ajudar-me com os miúdos quando eu precisasse; aos poucos fomos reconstruindo alguma confiança perdida ao longo dos anos.
No dia da audiência tremia dos pés à cabeça quando entrei no tribunal. O Agostinho estava lá, cara fechada, olhar furioso. Mas eu não desviei os olhos desta vez. Falei calmamente ao juiz; contei tudo sem omitir nada. O advogado dele tentou pintar-me como instável e exagerada; mas as provas estavam lá: relatórios médicos das nódoas negras antigas, testemunhos dos vizinhos sobre os gritos constantes.
O juiz decretou ordem de afastamento imediata e atribuiu-me provisoriamente a guarda dos miúdos até decisão final.
Saí do tribunal com lágrimas nos olhos mas sentia-me leve como há anos não sentia.
Hoje vivo num pequeno apartamento arrendado pela câmara municipal; trabalho duro mas consigo pagar as contas e dar aos meus filhos alguma estabilidade. A Agneta continua minha amiga mas nunca mais foi igual; percebi que há laços que se quebram quando mais precisamos deles.
Às vezes olho para trás e pergunto-me: como é possível sobreviver ao inferno e ainda acreditar no amanhã? Será que algum dia vou conseguir confiar plenamente noutra pessoa? E vocês… já sentiram que o mundo inteiro vos virou as costas no momento mais difícil?