Fuga para a Liberdade: Entre o Amor, a Culpa e o Perdão
— Vais mesmo deixar o teu irmão assim, Mariana? — A voz da minha mãe ecoava pelo corredor, rouca de raiva e cansaço. Eu, com a mochila já às costas, sentia o coração a bater tão forte que quase me sufocava. O cheiro a café queimado e a humidade das paredes misturavam-se com o cheiro do medo. — Não sou como tu, mãe. Não consigo viver só para cuidar dos outros — respondi, a voz a tremer, mas sem conseguir olhar-lhe nos olhos. O meu irmão, o Tiago, tossia no quarto ao lado. Tinha 14 anos e uma doença que ninguém sabia explicar bem. Era frágil, dependente, e a minha mãe fazia questão de me lembrar, todos os dias, que era minha obrigação cuidar dele.
A porta bateu atrás de mim. O som foi seco, definitivo. Senti-me a cair num vazio, mas também uma estranha leveza. Caminhei até à estação de comboios de Setúbal, sem olhar para trás, com o telemóvel a vibrar no bolso. Mensagens da minha mãe: “Ingrata. Vais arrepender-te. O Tiago não te perdoa.”, “És igual ao teu pai, só pensas em ti.”, “Se alguma coisa acontecer ao teu irmão, a culpa é tua.”
A cada mensagem, o peso da culpa aumentava. Mas havia também uma voz dentro de mim, sussurrando: “Tens direito à tua vida.”
Cheguei a Lisboa sem saber onde dormir. Liguei à minha amiga Inês, que me recebeu de braços abertos num quarto minúsculo em Benfica. — Fica aqui o tempo que precisares, Mariana. Não tens de passar por isto sozinha. — O calor do abraço dela foi o primeiro gesto de ternura que senti em meses. Mas a cada noite, deitada no colchão improvisado, ouvia a voz da minha mãe na cabeça. “O Tiago precisa de ti. És egoísta. És má filha.”
Os dias passaram entre entrevistas de emprego e tentativas de esquecer. Arranjei trabalho num café, a servir bicas e torradas a clientes apressados. O patrão, o senhor António, era duro mas justo. — Tens mãos rápidas, miúda. Mas tens de sorrir mais. — Eu tentava, mas o sorriso parecia sempre forçado. O dinheiro mal chegava para dividir a renda com a Inês e comprar comida. Mas, pela primeira vez, sentia-me dona do meu tempo.
As mensagens da minha mãe não paravam. Às vezes, ligava-me a chorar. Outras, insultava-me. — Mariana, volta para casa. O Tiago pergunta por ti todos os dias. — Eu desligava, incapaz de responder. Sentia-me uma traidora. Mas também sabia que, se voltasse, nunca mais sairia.
Uma noite, a Inês chegou a casa com os olhos vermelhos. — A tua mãe ligou-me. Disse que o Tiago está pior. Que precisa mesmo de ti. — Senti o chão a fugir-me dos pés. Passei a noite em claro, a pensar se devia voltar. O Tiago era mais do que um irmão, era quase um filho. Fui eu que lhe ensinei a andar de bicicleta, que lhe lia histórias quando tinha febre. Mas também fui eu que deixei de sair com amigos para lhe dar banho, que faltei a festas para o levar ao hospital. E a minha mãe nunca agradeceu. Só exigiu mais.
No trabalho, distraí-me e deixei cair uma bandeja de chávenas. O senhor António chamou-me à parte. — Tens de resolver o que te anda a atormentar, Mariana. Ou vais acabar por te perder. — Chorei no armazém, envergonhada. Senti raiva da minha mãe, do Tiago, de mim própria. Porque é que a minha vida tinha de ser sempre sobre os outros?
Nessa noite, decidi escrever ao Tiago. “Desculpa, mano. Não te abandonei. Preciso de aprender a cuidar de mim também. Amo-te.” Não tive resposta. A minha mãe mandou-me uma mensagem: “O teu irmão não quer falar contigo. Estás morta para nós.”
Os meses passaram. Fui promovida no café. Comecei a sair com colegas, a rir-me de novo. Conheci o Miguel, um estudante de arquitetura, que me ensinou a andar de mota pela cidade. — Tens de viver, Mariana. Não és só filha, nem só irmã. — Pela primeira vez, alguém via-me como pessoa, não como cuidadora.
Mas a culpa nunca desapareceu. No Natal, vi fotos da família no Facebook. O Tiago, mais magro, com um sorriso triste. A minha mãe, de olhar duro. Senti-me a pior pessoa do mundo. Liguei, mas ninguém atendeu. Passei o Natal com a Inês e o Miguel, mas o vazio era insuportável.
Um dia, a Inês chegou a casa com uma carta. — É da tua mãe. — As mãos tremiam-me ao abrir o envelope. “O Tiago está internado. Se quiseres despedir-te, é agora.”
O comboio para Setúbal parecia mais lento do que nunca. O hospital cheirava a desinfetante e tristeza. Encontrei a minha mãe no corredor, envelhecida, os olhos fundos. — Vieste, finalmente. — O tom era de acusação, mas também de alívio. — O Tiago perguntou por ti. — Entrei no quarto. O meu irmão sorriu, fraco. — Mana, vieste. — Sentei-me ao lado dele, peguei-lhe na mão. — Desculpa, Tiago. — Ele apertou-me os dedos. — Não faz mal. Só queria ver-te.
Fiquei com ele até adormecer. A minha mãe sentou-se ao meu lado. — Não percebo como conseguiste ir embora. — A voz dela era baixa, quase um sussurro. — Eu também não percebo, mãe. Só sei que, se não tivesse ido, já não era eu. — Ela chorou, pela primeira vez em muitos anos. — Eu só queria que fosses forte. — — Eu sou, mãe. Mas à minha maneira.
O Tiago saiu do hospital semanas depois. Voltei a Lisboa, mas agora ligava-lhe todos os dias. A relação com a minha mãe nunca voltou a ser igual, mas aprendi a pôr limites. O Miguel e a Inês tornaram-se a minha família escolhida. Ainda sinto culpa, ainda tenho dúvidas. Mas aprendi que não posso salvar ninguém se me perder a mim própria.
Às vezes pergunto-me: quantas de nós vivem presas à culpa, ao medo de desiludir quem amam? Será que algum dia conseguimos mesmo perdoar-nos por escolhermos a nossa liberdade?