Foge, Maria, antes que seja tarde – A minha história de sobrevivência à violência doméstica

— Maria, onde é que puseste as minhas chaves? — gritou o António da sala, a voz já carregada de impaciência. O som ecoou pela casa pequena de Vila Nova de Gaia, e eu estremeci, sentindo o coração acelerar. Sabia o que vinha a seguir se não respondesse rápido.

— Devem estar na mesa da entrada, António — respondi, tentando manter a voz calma, mas as mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair o prato que lavava.

Ele entrou na cozinha com passos pesados. Os olhos dele, outrora tão doces quando nos conhecemos na festa dos Santos Populares, agora eram frios, duros como pedra. — Sempre a mesma coisa, Maria! Nunca fazes nada direito! — atirou ele, empurrando-me de leve com o ombro ao passar. Não era a primeira vez. Nem seria a última.

Lembro-me de quando tudo era diferente. Tinha 23 anos quando conheci o António. Trabalhava numa pastelaria e ele era cliente habitual. Trazia flores, fazia-me rir com piadas parvas e dizia que eu era a mulher mais bonita do Porto. A minha mãe avisou-me: “Cuidado, filha. Os homens que falam muito, às vezes escondem muito.” Mas eu não quis ouvir. Apaixonei-me perdidamente.

Casámo-nos ao fim de um ano. No início, era tudo perfeito. Ele fazia promessas de uma vida melhor, dizia que íamos comprar uma casa maior, ter filhos e ser felizes. Mas logo depois do casamento começaram os ciúmes. Primeiro eram perguntas: “Com quem falaste hoje?”, “Porque é que demoraste tanto no supermercado?” Depois vieram os gritos e as portas batidas.

A primeira vez que me bateu foi numa noite de inverno. Eu tinha chegado tarde do trabalho porque a patroa pediu-me para fechar a loja. António estava à minha espera no escuro da sala. Quando entrei, ele levantou-se devagar e perguntou: “Andaste com outro?” Antes que eu pudesse responder, senti a mão dele na minha cara. O choque foi tão grande que nem chorei. Só fiquei ali parada, com a cara a arder e o coração partido.

No dia seguinte pediu desculpa. Chorou, prometeu que nunca mais acontecia. Trouxe-me flores como nos velhos tempos. E eu quis acreditar. Quis mesmo acreditar.

Mas não foi a última vez. As agressões tornaram-se mais frequentes e intensas. O António controlava tudo: o dinheiro, as minhas saídas, até as chamadas para a minha mãe eram vigiadas. Quando engravidei da nossa filha Inês, pensei que ele ia mudar. Mas foi pior.

— Maria, não quero visitas cá em casa! — dizia ele sempre que a minha mãe ligava a pedir para vir ver a neta.

— Mas António, ela só quer ver a Inês…

— Cala-te! Aqui mando eu! — gritava ele, batendo com o punho na mesa.

A Inês nasceu prematura. Passei noites no hospital sozinha porque ele dizia que tinha “coisas mais importantes para fazer”. Quando finalmente trouxe a bebé para casa, sentia-me exausta e assustada. O António não ajudava em nada. Se chorava à noite, ele gritava comigo: “Faz essa miúda calar-se!”

Comecei a afastar-me dos amigos e da família. Tinha vergonha de contar o que se passava em casa. Quando a minha irmã Ana me ligava, eu fingia que estava tudo bem.

— Maria, estás diferente… aconteceu alguma coisa? — perguntava ela.

— Não, está tudo bem… só estou cansada — mentia eu, tentando esconder as lágrimas.

Mas um dia não consegui esconder mais. Foi numa manhã de domingo. O António perdeu a cabeça porque o pequeno-almoço não estava pronto quando ele acordou. Atirou uma chávena contra a parede e empurrou-me com tanta força que bati com a cabeça no armário da cozinha.

A Inês começou a chorar no berço e eu corri para ela, abraçando-a com todas as forças. Senti um desespero tão grande que pensei em fugir naquele instante. Mas para onde? Não tinha dinheiro próprio, nem sabia se alguém acreditaria em mim.

Nessa noite, sentei-me no chão da casa de banho e chorei baixinho para não acordar a Inês. Olhei-me ao espelho: os olhos inchados, o lábio cortado… Quem era aquela mulher? Onde estava a Maria alegre e sonhadora de outros tempos?

Foi então que ouvi um sussurro dentro de mim: “Foge, Maria… antes que seja tarde.”

Demorei semanas até ganhar coragem para pedir ajuda à Ana. Liguei-lhe num dia em que o António saiu para trabalhar mais cedo.

— Ana… preciso de ti — disse eu, com a voz trémula.

Ela percebeu logo tudo. No dia seguinte apareceu à porta com o meu cunhado e uma mala pequena.

— Vamos embora daqui — disse ela sem hesitar.

Saímos de casa em silêncio, com a Inês ao colo e o coração aos pulos. Fomos para casa da Ana em Matosinhos. Nos primeiros dias mal conseguia dormir; tinha medo que o António aparecesse à porta.

Ele ligou dezenas de vezes, deixou mensagens ameaçadoras: “Se não voltares vou tirar-te a miúda!” Fui à polícia com a Ana e fiz queixa. O processo foi lento e doloroso; tive de contar tudo ao pormenor diante de estranhos.

A minha mãe chorou muito quando soube de tudo. Sentiu-se culpada por não ter percebido antes.

— Desculpa filha… devia ter-te protegido — disse ela entre lágrimas.

— A culpa não é tua mãe… Eu é que devia ter fugido mais cedo — respondi eu, abraçando-a.

Com o tempo comecei a reconstruir a minha vida. Arranjei trabalho numa lavandaria e inscrevi-me num grupo de apoio a mulheres vítimas de violência doméstica. Conheci outras Marias, outras mulheres como eu, cada uma com uma história diferente mas igual na dor.

A Inês cresceu rodeada de amor na casa da tia Ana e da avó Rosa. Ainda hoje tem pesadelos às vezes; acorda a chamar por mim e eu abraço-a forte, prometendo-lhe que nunca mais ninguém nos vai magoar.

O António foi condenado mas saiu cedo da prisão por bom comportamento. Ainda tenho medo dele às vezes; olho por cima do ombro quando vou buscar a Inês à escola ou quando volto do trabalho à noite.

Mas hoje sou mais forte do que nunca fui antes. Aprendi que o amor não dói — quem ama cuida e respeita.

Às vezes pergunto-me: quantas Marias ainda vivem presas ao medo? Quantas acreditam que merecem aquilo que lhes fazem? Se estás aí desse lado e sentes o mesmo… foge antes que seja tarde demais.

Será possível recomeçar depois de tanta dor? O que é preciso para uma mulher voltar a confiar em si própria? Gostava de ouvir as vossas histórias…