Flores no Corredor: Entre o Amor e o Desconforto
— Outra vez, Ana? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, carregada de uma raiva contida. — Vais mesmo aceitar isto?
Olhei para o ramo de flores frescas e a caixa de chocolates artesanais pousados na bancada. O cartão dizia apenas: “Para iluminar o seu dia. — Rui”. O novo vizinho do 3º esquerdo. Senti o rosto a aquecer, não por vergonha, mas por medo do que aquela pequena oferta estava a provocar entre nós.
— Miguel, é só um gesto simpático. Ele é novo aqui, não conhece ninguém…
— Não sejas ingénua! — cortou ele, batendo com força a porta do frigorífico. — Um homem não oferece flores e chocolates a uma mulher casada sem segundas intenções.
Fiquei em silêncio. O Miguel nunca fora ciumento, mas nos últimos anos, desde que a rotina se instalou e os silêncios começaram a pesar mais do que as conversas, tudo parecia uma ameaça. Senti-me dividida entre a vontade de manter a paz e o desejo de não ser injusta com Rui, que me parecia apenas solitário.
Naquela noite, enquanto jantávamos em silêncio, lembrei-me de quando eu e o Miguel éramos cúmplices. Ríamos das pequenas coisas, fazíamos planos para viagens que nunca chegámos a fazer. Agora, cada gesto era analisado ao microscópio da desconfiança.
No dia seguinte, encontrei Rui no elevador. Trazia um sorriso tímido e uma caixa de ferramentas.
— Bom dia, Ana! Espero que não tenha levado a mal… As flores…
Sorri-lhe, tentando ser cordial.
— Não levei nada a mal, Rui. Mas talvez seja melhor não repetir. O Miguel não gostou muito.
Ele baixou os olhos, embaraçado.
— Desculpe, não queria causar problemas. Só achei que… Bem, achei que podia ser simpático.
A porta do elevador abriu-se e saímos juntos. Senti um aperto no peito — era injusto que um gesto tão simples pudesse causar tanto desconforto.
Ao chegar a casa, encontrei o Miguel sentado no sofá, com o telemóvel na mão. Olhou para mim como se procurasse sinais de culpa.
— Falaste com ele?
Assenti.
— Disse-lhe para não voltar a trazer nada. Não quero problemas entre nós.
Ele suspirou, mas não disse nada. O silêncio voltou a instalar-se.
Os dias passaram e Rui manteve-se discreto. Cumprimentava-me no corredor com um aceno de cabeça e um sorriso triste. Mas o mal já estava feito: o Miguel tornara-se mais distante, mais frio. Comecei a sentir-me culpada por algo que não fizera.
Uma noite, durante o jantar, decidi enfrentar o problema.
— Miguel, achas mesmo que eu te traí? Ou que pensei sequer nisso?
Ele largou os talheres e olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Não sei, Ana… Só sei que já não somos os mesmos. E às vezes sinto que qualquer coisa pode afastar-nos ainda mais.
As lágrimas vieram-me aos olhos. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos na faculdade, das promessas trocadas à beira-rio em Lisboa, dos sonhos partilhados num T1 minúsculo em Benfica. Onde é que nos tínhamos perdido?
— Eu também sinto falta de nós — confessei. — Mas não é justo desconfiar de mim por causa de um vizinho solitário.
Ele passou as mãos pelo rosto, cansado.
— Talvez tenhas razão. Mas custa-me ver-te sorrir para outro homem… Mesmo que seja só amizade.
Naquela noite dormimos de costas voltadas. Senti-me sozinha como há muito não sentia.
No fim-de-semana seguinte, fui ao supermercado e cruzei-me com Rui na secção dos legumes. Ele hesitou antes de falar:
— Ana… Desculpe insistir, mas gostava de explicar-me ao seu marido. Não quero ser motivo de discórdia.
Pensei durante uns segundos e acabei por concordar. Talvez fosse melhor esclarecer tudo de uma vez por todas.
No domingo à tarde, convidei Rui para tomar um café connosco. O ambiente estava tenso; o Miguel manteve-se calado durante quase todo o tempo.
Rui explicou-se: tinha perdido a mulher há dois anos e mudara-se para Lisboa para recomeçar. As flores eram uma tradição antiga — oferecia-as sempre aos vizinhos quando chegava a um novo prédio.
O Miguel ouviu tudo em silêncio e, no fim, limitou-se a acenar com a cabeça.
Depois disso, as coisas acalmaram um pouco. Mas algo tinha mudado entre mim e o Miguel. A confiança já não era inabalável; havia pequenas fissuras por onde entrava o frio da dúvida.
Comecei a reparar em tudo: nas mensagens que ele trocava com colegas do trabalho tarde da noite; nas saídas prolongadas ao fim-de-semana; nos olhares fugidios quando lhe perguntava onde tinha estado.
Uma noite, depois de mais uma discussão sem sentido sobre quem devia lavar a loiça, explodi:
— Isto não é vida! Estamos juntos ou só partilhamos casa?
Ele olhou para mim como se me visse pela primeira vez em anos.
— Não sei responder-te, Ana…
Fui dormir para o sofá nessa noite. Senti-me perdida, como se estivesse à deriva num mar revolto sem saber onde era a costa.
No dia seguinte, Rui bateu à porta com um bolo caseiro nas mãos.
— Vi-a triste ontem no corredor… Está tudo bem?
Desatei a chorar ali mesmo à porta. Contei-lhe tudo: as discussões, as dúvidas, o medo de perder quem fui durante tantos anos.
Rui ouviu-me em silêncio e depois disse apenas:
— Às vezes é preciso perdermo-nos para nos encontrarmos outra vez.
Agradeci-lhe e fechei a porta devagar. Fiquei ali parada durante minutos, a pensar nas suas palavras.
Nessa noite sentei-me ao lado do Miguel no sofá.
— Quero tentar outra vez — disse-lhe. — Mas precisamos de falar sobre tudo o que ficou por dizer nestes anos todos.
Ele pegou na minha mão e chorámos juntos pela primeira vez desde que perdemos o nosso primeiro filho há vinte anos atrás — uma dor nunca totalmente sarada que talvez tenha sido o início das nossas distâncias silenciosas.
Não sei se vamos conseguir recuperar tudo o que fomos. Mas sei que não quero desistir sem lutar.
Às vezes pergunto-me: quantos casamentos acabam por causa de mal-entendidos? Quantas vezes deixamos que pequenos gestos se transformem em muralhas intransponíveis? E vocês — já sentiram o peso da dúvida onde antes só havia confiança?