Fiquei com o meu pai, enquanto o meu irmão fazia a sua vida. Mas o testamento do meu pai partiu-me o coração…
— Não podes estar a falar a sério, pai! — gritei, sentindo o peito apertar-se, enquanto ele desviava o olhar para a janela da sala. O sol poente entrava pelas cortinas de renda, desenhando sombras no rosto cansado do meu pai. — Depois de tudo o que fiz por ti…
Ele não respondeu. Ficou ali, calado, com os olhos fixos nas árvores do quintal. O silêncio era tão pesado que quase me sufocava. Eu sabia que estava a ser injusta, mas naquele momento só conseguia pensar em mim, em tudo o que abdiquei para ficar ao lado dele. O meu irmão, Ricardo, saiu de casa cedo, foi estudar para Lisboa e nunca mais voltou senão para os jantares de Natal ou aniversários. Eu fiquei. Fui eu que levei o meu pai às consultas, que lhe fiz companhia nas noites de insónia, que lhe preparei as sopas quando já não conseguia mastigar direito.
A minha mãe morreu cedo. Tinha eu dezasseis anos e o Ricardo catorze. O meu pai ficou perdido, e eu assumi a casa como se fosse minha. Lavei, cozinhei, tratei dele e do meu irmão até ele decidir ir embora. Nunca me casei, nunca tive filhos. Os meus sonhos ficaram guardados numa gaveta fechada à chave.
Naquela tarde, depois de mais uma discussão sobre o futuro da casa, percebi que algo estava errado. O meu pai estava estranho há semanas, distante. Não era só a doença — era como se estivesse a preparar-se para partir.
— Filha… — disse ele por fim, com a voz rouca — Nem tudo é tão simples como parece.
— O que é que queres dizer com isso? — perguntei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair.
Ele suspirou e pousou a mão trémula sobre a minha.
— Quero que tu e o Ricardo fiquem bem um com o outro. Não quero que esta casa vos separe.
— Mas separar-nos? Eu é que fiquei! Eu é que cuidei de ti! — A minha voz saiu mais alta do que queria.
Ele fechou os olhos e abanou a cabeça.
— Um dia vais perceber…
Não percebi. Não percebi naquele dia, nem nos meses seguintes. O meu pai foi piorando e acabou por morrer numa manhã fria de janeiro. O funeral foi pequeno: alguns vizinhos, os primos distantes e o Ricardo, claro, que chegou de Lisboa com um casaco novo e um ar cansado.
Depois do funeral, sentámo-nos os dois na sala, rodeados pelo cheiro a café e pelas memórias pesadas daquela casa.
— Então… — disse ele, mexendo nervosamente nas mãos — O advogado ligou-me. Diz que temos de ir lá amanhã.
Assenti em silêncio. Não queria falar com ele. Sentia uma raiva surda por tudo: por ele ter ido embora, por nunca ter ajudado, por aparecer agora como se nada fosse.
No escritório do advogado, tudo parecia irreal. As palavras ecoavam na minha cabeça: “O senhor António deixou em testamento que a casa será dividida igualmente entre os dois filhos.” Senti o chão fugir-me dos pés.
— Não pode ser… — murmurei — Eu vivi aqui toda a vida! O Ricardo nem cá vinha!
O advogado olhou-me com pena.
— Lamento, Dona Teresa. Foi essa a vontade do seu pai.
Olhei para o Ricardo à espera de uma reação. Ele parecia tão surpreendido quanto eu.
— Teresa… — começou ele — Eu não sabia de nada disto…
Levantei-me de rompante e saí porta fora. Lá fora chovia miudinho e eu deixei-me molhar sem pressa de voltar para casa. Senti-me traída. Como podia o meu pai fazer-me isto? Depois de tudo?
Nos dias seguintes, evitei o Ricardo. Ele ligava-me, mandava mensagens, mas eu não queria falar com ele. Só conseguia pensar na injustiça daquela decisão. A casa era tudo o que eu tinha. Não tinha marido, não tinha filhos, não tinha carreira brilhante como ele. Tinha aquela casa e as memórias do meu sacrifício.
Uma semana depois, ele apareceu à porta sem avisar.
— Teresa, temos de falar.
Abri a porta contrariada.
— O que queres?
Ele entrou sem pedir licença e sentou-se na sala.
— Eu não quero metade da casa — disse ele — Nem sequer preciso dela. Mas também não posso simplesmente abdicar da minha parte… Tenho dívidas em Lisboa…
Olhei para ele com desprezo.
— Claro. Vieste buscar o teu quinhão agora que já não há ninguém para te julgar.
Ele baixou os olhos.
— Não é isso… Eu sei que não estive cá. Sei que foste tu que cuidaste do pai… Mas também sou filho dele.
Senti um nó na garganta. Queria gritar-lhe tudo o que me ia na alma: as noites sem dormir, as discussões com o meu pai sobre medicamentos e contas para pagar, os sonhos adiados… Mas limitei-me a chorar em silêncio.
— Teresa… — disse ele baixinho — Eu gostava de encontrar uma solução justa para os dois.
— Justa? O que é justo nisto? — perguntei entre soluços — Achas justo eu perder tudo porque tu precisas de dinheiro?
Ele ficou calado durante uns segundos.
— Talvez possas comprar a minha parte…
Ri-me amargamente.
— Com quê? Com as economias que gastei em médicos e farmácias?
O silêncio voltou a instalar-se entre nós. Ele levantou-se devagar e pousou uma mão no meu ombro antes de sair.
Durante semanas vivi num limbo: não conseguia dormir nem comer direito. Cada canto da casa me lembrava do meu pai e da injustiça do testamento. Os vizinhos começaram a comentar: “Coitada da Teresa…”, “O irmão só cá vem buscar dinheiro…”
Um dia recebi uma carta registada: Ricardo queria avançar com a venda da casa se eu não conseguisse comprar a parte dele até ao fim do mês. Senti-me traída duas vezes: pelo meu pai e pelo meu irmão.
Procurei ajuda junto dos primos, dos amigos antigos da família. Todos diziam o mesmo: “É assim a lei…” Ouvi conselhos para arranjar um empréstimo no banco ou procurar um advogado para contestar o testamento. Mas sabia que nada disso ia devolver-me os anos perdidos ou curar a ferida aberta no coração.
Numa noite de insónia sentei-me na cozinha com uma chávena de chá frio entre as mãos e olhei para as fotografias antigas na parede: eu em criança ao colo da minha mãe; eu e Ricardo no jardim; o meu pai sorridente no dia em que fez 60 anos. Perguntei-me se valia a pena lutar por aquela casa ou se devia simplesmente deixar tudo para trás e começar de novo noutro lugar qualquer.
No fim do mês, sem conseguir reunir dinheiro suficiente nem coragem para enfrentar mais discussões judiciais, aceitei vender a casa. No dia em que entreguei as chaves ao novo proprietário senti um vazio imenso dentro de mim. Abracei-me às memórias e chorei como nunca tinha chorado antes.
Ricardo tentou falar comigo várias vezes depois disso. Mandou mensagens, escreveu cartas onde pedia desculpa e dizia que gostava de recuperar a relação entre irmãos. Mas eu não conseguia perdoar-lhe — nem ao meu pai.
Hoje vivo num pequeno apartamento alugado nos arredores do Porto. Trabalho num lar de idosos onde cuido de pessoas solitárias como eu. Às vezes penso se fiz bem em sacrificar tanto por alguém que no fim não soube reconhecer o meu valor.
Pergunto-me muitas vezes: será que vale mesmo a pena abdicar da nossa vida pelos outros? Ou será que devemos pensar mais em nós próprios antes que seja tarde demais? E vocês? O que fariam no meu lugar?