Filhos à Mesa: O Jantar Esquecido
— Mãe, outra vez arroz? — perguntou o Tiago, largando os talheres com um estrondo que ecoou pela cozinha. O barulho fez-me estremecer, mas não respondi de imediato. Olhei para o prato dele, para o arroz branco e a posta de pescada cozida, e senti o peso do dia inteiro a cair-me nos ombros.
A Maria, mais nova, olhava para mim com aqueles olhos grandes, cheios de perguntas que nunca fazia em voz alta. O João, adolescente, mantinha-se calado, a mexer no telemóvel por baixo da mesa, fingindo que não via nem ouvia nada. O silêncio era tão denso que quase se podia cortar à faca.
— Se não gostas, faz tu o jantar — disse eu, tentando não deixar a voz tremer. Mas por dentro sentia-me a desmoronar. Tinha passado o dia inteiro a correr de um lado para o outro: deixei-os na escola às sete e meia, fui trabalhar para o supermercado, levei com clientes maldispostos e colegas que só sabem reclamar. No fim do turno, ainda fui buscar a minha mãe ao centro de saúde porque ela já não consegue andar sozinha. Cheguei a casa tarde e cansada, mas mesmo assim pus-me a cozinhar.
O Tiago bufou e empurrou o prato para longe. — Estou farto disto! Nunca há nada de jeito nesta casa!
A Maria começou a chorar baixinho. O João levantou-se sem dizer palavra e foi para o quarto. Fiquei ali sentada, sozinha à mesa, com o cheiro do arroz frio a subir-me ao nariz. Senti uma raiva surda a crescer cá dentro, misturada com uma tristeza antiga que nunca me larga.
Lembrei-me do meu pai, há muitos anos atrás, quando ainda vivíamos todos juntos na casa pequena em Vila Nova de Gaia. Ele também chegava tarde do trabalho, cansado e calado. A minha mãe fazia sopa de feijão e batatas cozidas quase todos os dias. Eu também reclamava, mas agora percebo que ela fazia o melhor que podia.
Levantei-me devagar e fui bater à porta do quarto do João.
— Filho, podemos falar?
Do outro lado ouvi um resmungo. Entrei sem esperar resposta. Ele estava deitado na cama, ausente no mundo dele.
— Não é fácil para mim — disse-lhe, sentando-me na ponta da cama. — Eu sei que não é o jantar dos teus sonhos, mas estou a tentar…
Ele virou-se para o lado oposto.
— Ninguém pediu para tentares tanto — murmurou.
As palavras dele cortaram-me como uma faca. Saí do quarto antes que ele visse as lágrimas nos meus olhos.
Na cozinha, encontrei a Maria ainda sentada à mesa, agora a brincar com os grãos de arroz no prato.
— Desculpa, mãe — disse ela baixinho. — Eu gosto do teu arroz.
Abracei-a com força. O Tiago já tinha desaparecido para o quintal, provavelmente a jogar à bola sozinho ou a descarregar a raiva nas pedras do jardim.
Sentei-me outra vez à mesa e olhei para as cadeiras vazias. Lembrei-me de quando eram pequenos e corriam pela casa aos gritos, felizes só por estarmos juntos. Agora cada um está fechado no seu mundo, e eu sinto-me cada vez mais sozinha no meio deles.
O telefone tocou. Era a minha mãe.
— Filha, está tudo bem? — perguntou ela com aquela voz cansada mas preocupada.
— Está… mais ou menos — respondi. — Os miúdos estão difíceis hoje.
— Tens de ter paciência. Eles crescem depressa demais. Depois sentes falta até das birras.
Sorri sem vontade. Despedi-me dela e desliguei. Fui até à janela da sala e fiquei a olhar para a rua escura. Oiço os risos das crianças dos vizinhos lá fora e penso em como tudo parece mais fácil nas casas dos outros.
O meu marido foi-se embora há três anos. Disse que precisava de “encontrar-se” e nunca mais voltou. Desde então sou só eu contra o mundo. Às vezes penso que estou a falhar em tudo: no trabalho ganho pouco, em casa não consigo agradar aos filhos, nem sequer tenho tempo para mim própria.
No dia seguinte acordei cedo demais. Fui ao quarto dos miúdos ver se estavam bem. O Tiago dormia encolhido como um gato pequeno; o João roncava baixinho; a Maria tinha os braços abertos como se quisesse abraçar o mundo inteiro.
Preparei-lhes torradas e leite quente antes de os acordar para a escola. O Tiago entrou na cozinha de cara fechada, mas sentou-se sem reclamar. O João apareceu de auscultadores nos ouvidos; só tirou um para dizer:
— Mãe… desculpa por ontem.
Olhei para ele surpreendida.
— Eu também não estou bem — acrescentou ele baixinho.
Abracei-o sem dizer nada. A Maria sorriu e agarrou-se à minha cintura.
Naquele momento percebi que apesar das discussões e dos silêncios, ainda éramos uma família. Imperfeita, cheia de falhas e mágoas, mas minha.
À noite tentei fazer algo diferente: comprei bifes de frango em promoção e fiz um arroz de forno com legumes. Não era nada especial, mas pus a mesa com carinho e acendi uma vela no centro só para dar ambiente.
Quando os chamei para jantar, vieram todos juntos — até o Tiago trouxe uma flor do jardim para pôr na mesa.
Sentámo-nos os quatro à volta da mesa pequena da cozinha. O João contou uma piada da escola; a Maria riu tanto que quase caiu da cadeira; o Tiago pediu mais arroz duas vezes.
Por um momento esqueci as contas por pagar, as dores nas costas e o medo do futuro. Só existia aquele instante: os meus filhos à mesa comigo, a rir e a conversar como antigamente.
No fim do jantar fiquei sozinha na cozinha a arrumar tudo. Olhei para os pratos vazios e senti uma paz estranha dentro de mim.
Será que algum dia eles vão perceber tudo o que faço por eles? Ou será que só damos valor às pequenas coisas quando já é tarde demais?
E vocês? Também sentem que às vezes lutam sozinhos por uma família que parece não vos ver?