Ficar Até Tarde: Entre o Medo e o Silêncio

— Vais ficar até tarde outra vez, Mariana? — A voz de Rui ecoou pelo corredor, carregada de ironia e cansaço.

Fingi não ouvir. Já estava com o casaco vestido, a mala pendurada no ombro, e a cabeça cheia de desculpas. O relógio marcava 19h45, mas para mim o tempo já não tinha significado. O escritório vazio era o meu abrigo, o único lugar onde ninguém me olhava com desdém ou me fazia sentir invisível.

Lembro-me de quando Rui e eu nos apaixonámos. Era verão, as noites eram longas e cheias de promessas. Ele fazia-me rir, dizia que eu era a mulher mais inteligente que conhecera. Mas os anos passaram, e as palavras doces deram lugar ao silêncio cortante. Agora, cada regresso a casa era um mergulho num mar gelado.

No trabalho, era diferente. A Carla vinha pedir ajuda com relatórios, o João pedia opinião sobre apresentações. Sentia-me útil, necessária. Às vezes, ficava até às dez da noite só para não ter de enfrentar o olhar vazio de Rui ou o som abafado da televisão na sala.

— Mariana, não achas que já chega? — ouvi a voz da minha chefe, Dona Teresa, certa noite. — Tens família em casa.

Sorri, sem coragem de explicar que era precisamente por isso que ali ficava. O escritório era luz branca e ruído de teclados; em casa, era escuridão e portas fechadas.

A minha mãe ligava todos os domingos:

— Filha, está tudo bem? O Rui trata-te bem?

Eu respondia sempre o mesmo:

— Está tudo bem, mãe. Só ando cansada do trabalho.

Mentia-lhe. Mentia a mim mesma. Rui já não me tratava bem há muito tempo. Não havia gritos nem violência física, mas havia algo pior: a indiferença. O desprezo silencioso que me fazia duvidar do meu valor.

Uma noite, cheguei a casa e encontrei Rui à mesa da cozinha, a olhar para o telemóvel.

— Trouxeste pão? — perguntou sem levantar os olhos.

— Não sabia que precisavas — respondi.

Ele bufou.

— Nunca sabes nada. Só sabes trabalhar.

Senti um nó na garganta. Quis gritar, quis atirar-lhe todas as horas que passava a tentar ser suficiente para ele. Mas limitei-me a ir para o quarto e fechar a porta.

As semanas passaram assim: eu a fugir para o trabalho, ele a fugir para dentro de si mesmo. Os jantares eram silenciosos, as noites frias. Até os amigos começaram a afastar-se; já ninguém nos convidava para nada.

Certa sexta-feira, depois de um dia particularmente difícil no escritório, decidi ir mais cedo para casa. Talvez se tentasse conversar… Talvez ainda houvesse salvação.

Quando entrei, ouvi vozes na sala. Era Rui e a irmã dele, Sofia.

— Ela só pensa nela — dizia Sofia. — Sempre foi assim.

— Eu já nem sei quem ela é — respondeu Rui.

Fiquei parada no corredor, sem coragem de entrar. Senti-me uma intrusa na minha própria casa. Saí de mansinho e fui dar uma volta pelo bairro. Chovia miudinho e o frio entrava-me pelos ossos.

No dia seguinte, Rui saiu cedo sem dizer nada. Passei o sábado inteiro sozinha, a olhar para as paredes. Peguei numa folha e comecei a escrever tudo o que sentia: raiva, tristeza, solidão. Escrevi até não ter mais lágrimas.

No domingo à noite, quando Rui voltou, tentei falar com ele:

— Rui, precisamos de conversar.

Ele olhou-me como se eu fosse uma desconhecida.

— Sobre o quê? Já não há nada para dizer.

Senti o chão fugir-me dos pés. Percebi ali que já não havia nós; só dois estranhos a partilhar um teto.

Na segunda-feira seguinte, fui trabalhar como sempre. Mas dessa vez não fiquei até tarde. Saí às seis em ponto e fui dar um passeio junto ao rio Tejo. O vento era forte, mas senti-me estranhamente leve.

Pela primeira vez em anos, pensei em mim. No que queria para o meu futuro. No direito que tinha de ser feliz e respeitada.

Quando cheguei a casa, Rui estava na sala. Olhou para mim com surpresa:

— Vieste cedo hoje.

Assenti.

— Vim porque preciso de mudar a minha vida. Não posso continuar assim.

Ele não respondeu. Levantou-se e foi para o quarto sem dizer palavra.

Naquela noite dormi pouco, mas sonhei muito. Sonhei com uma Mariana livre do medo e da solidão; uma Mariana capaz de se amar outra vez.

Hoje escrevo esta história porque sei que não estou sozinha. Quantas mulheres ficam até tarde no trabalho só para evitar um lar onde não são respeitadas? Quantos homens se escondem atrás do silêncio por medo de enfrentar os próprios fracassos?

Afinal, quantas vezes fugimos do confronto só para prolongar o sofrimento? Será que temos coragem de escolher o respeito próprio antes do hábito? Gostava de saber: quantos de vocês já sentiram este vazio?