Ficar Até Tarde: Entre o Medo e o Silêncio

— Vais chegar tarde outra vez, não vais? — a voz do Rui ecoou pelo corredor, carregada de desconfiança e cansaço.

Fingi não ouvir, como tantas outras vezes. O som das teclas do computador era o meu escudo. No escritório, entre pilhas de papéis e o zumbido da máquina de café, sentia-me invisível e, paradoxalmente, protegida. Ali ninguém me julgava por ser quem era ou por não ser aquilo que esperavam de mim em casa.

O relógio marcava 21h47. A maioria dos colegas já tinha ido embora há horas. Só restava eu e a Marta, que me lançou um olhar curioso.

— Ainda aqui? O Rui não te mata? — perguntou ela, meio a brincar, meio preocupada.

Sorri, mas o sorriso morreu-me nos lábios. — Ele já nem repara — respondi, tentando soar leve. Mas a verdade era outra: ele reparava sim, só que não se importava. Ou pior, importava-se demasiado, mas nunca pelas razões certas.

Lembro-me de quando nos conhecemos, há dez anos atrás, numa festa de São João no Porto. Ele era divertido, espontâneo, fazia-me rir até às lágrimas. Nunca pensei que aquele homem se transformaria num estranho sentado no sofá da nossa sala, a ver futebol com uma cerveja na mão e o olhar perdido.

A primeira vez que fiquei até tarde no trabalho foi por acaso. Um projeto urgente, uma entrega impossível. Quando cheguei a casa, ele já dormia. No dia seguinte, nem perguntou por mim. Senti um alívio estranho. E assim começou o ciclo: quanto mais tarde chegava, menos discutíamos. Quanto menos discutíamos, mais distante ficávamos.

O problema é que o silêncio também pesa. E pesa muito.

Uma noite, cheguei a casa e encontrei a mesa posta para um. O Rui estava no quarto, luz apagada. Sentei-me sozinha na cozinha, a comer uma sopa fria. Oiço passos atrás de mim.

— Não tens vergonha? — disse ele, voz baixa mas cortante. — Passas mais tempo naquele escritório do que aqui. Para quê? Para fugires de mim?

Engoli em seco. — Não estou a fugir de ninguém. Tenho trabalho.

Ele riu-se, um riso amargo. — Trabalho… Pois claro. Sempre o trabalho.

Quis gritar-lhe que não era só o trabalho. Que era ele também. Que era aquela sensação constante de não ser vista, de não ser ouvida. Mas calei-me. Como sempre.

Os dias passaram assim: eu a sair cada vez mais cedo de casa e a chegar cada vez mais tarde. No escritório, ajudava toda a gente — até quem não pedia ajuda. Era mais fácil resolver os problemas dos outros do que enfrentar os meus.

A Marta começou a reparar.

— Sabes que podes falar comigo, não sabes? — disse ela um dia, enquanto arrumávamos os dossiers.

Olhei para ela e quase chorei. Mas não consegui dizer nada.

Em casa, o Rui tornou-se uma sombra. Às vezes tentava puxar conversa:

— Lembras-te quando íamos ao Douro só porque sim?

Eu lembrava-me. Mas agora tudo parecia tão distante que doía lembrar.

Uma noite, cheguei mais cedo do que o habitual. Queria surpreendê-lo, talvez recuperar qualquer coisa perdida pelo caminho. Entrei em casa em silêncio e ouvi vozes na sala. Era ele e a mãe dele, a Dona Lurdes.

— Ela já nem parece minha mulher — dizia ele, voz embargada.

— Tens de ser firme com ela! — aconselhava Dona Lurdes. — Uma mulher tem de saber o seu lugar.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Fui para o quarto sem dizer nada. Chorei baixinho até adormecer.

No dia seguinte, Rui tentou falar comigo ao pequeno-almoço:

— Temos de conversar.

— Sobre o quê? — perguntei sem levantar os olhos da chávena de café.

— Sobre nós. Isto não está bem.

Quis dizer-lhe tudo: que me sentia sozinha mesmo ao lado dele; que já não sabia se queria continuar; que tinha medo do futuro e vergonha do passado. Mas as palavras ficaram presas na garganta.

— Não sei se ainda há um “nós”, Rui — murmurei.

Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que tinha ido embora.

Os dias seguintes foram ainda mais frios. No trabalho, comecei a cometer erros parvos: esquecia reuniões, trocava documentos importantes. A Marta chamou-me à parte:

— Tens de te cuidar, Sofia. Não podes continuar assim.

Chorei no ombro dela como uma criança perdida.

Foi nesse dia que percebi: estava a fugir de mim própria tanto quanto fugia do Rui. O escritório já não era refúgio; era prisão.

Numa sexta-feira à noite, decidi ir para casa cedo. Quando entrei na sala, Rui estava sentado à mesa com uma mala feita ao lado da cadeira.

— Vou para casa da minha mãe uns tempos — disse ele sem me olhar nos olhos.

Senti um alívio imediato seguido de um vazio imenso.

— Talvez seja melhor assim — respondi baixinho.

Ele saiu sem dizer mais nada.

Fiquei ali sentada durante horas, a olhar para o vazio da sala e para as paredes onde já não havia fotografias nossas.

Na segunda-feira seguinte, cheguei ao escritório à hora certa pela primeira vez em meses. A Marta sorriu-me com ternura e eu percebi que ainda havia vida para além do medo e do silêncio.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes nos escondemos atrás do trabalho para não enfrentarmos aquilo que realmente dói? Será que fugir é sempre mais fácil do que lutar? E vocês… já sentiram este peso do silêncio em casa?