Férias que me transformaram na ovelha negra da família
— Vais mesmo deixar-nos assim, Maria? — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de incredulidade e uma pitada de raiva. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com a tensão no ar, tornando o ambiente quase irrespirável.
Olhei para as mãos, trémulas, e tentei encontrar palavras que não soassem como uma traição. — Mãe, são só uns dias. Preciso disto para mim. Só desta vez.
O meu pai, sentado à cabeceira da mesa, nem levantou os olhos do jornal. — Sempre foste a mais sensível cá de casa. Mas férias? Sozinha? E quem é que vai ajudar a tua irmã com os miúdos? E a avó, quem lhe vai buscar os remédios?
A minha irmã, Inês, cruzou os braços e lançou-me um olhar cortante. — Engraçado. Quando eu precisei de ajuda depois do divórcio, tu estavas lá. Agora que é a tua vez de dar uma mãozinha, decides ir passear para o Algarve. Que bonito.
Senti o peso de todos os anos em que fui o pilar da família: a filha que ficou em casa quando todos partiram, a tia sempre disponível para babysitting, a neta que nunca falhava uma visita ao hospital. Sempre me disseram que era forte, mas nunca me perguntaram se estava cansada.
Naquela manhã, entre torradas e acusações veladas, percebi que ninguém ali via a Maria mulher — só viam a Maria solução. O silêncio do meu pai era mais ensurdecedor do que qualquer grito. A minha mãe limpava as mãos no avental com gestos bruscos, como se pudesse esfregar dali a minha decisão.
— Não é justo — murmurei, quase sem voz.
A Inês bufou. — Justo? Justo era teres avisado com antecedência! Agora vou ter de faltar ao trabalho para levar a avó ao médico.
— Eu avisei há semanas… — tentei argumentar, mas ninguém quis ouvir.
Saí de casa com a mala na mão e o coração apertado. O comboio para Faro partia às 10h12. Sentei-me junto à janela e deixei as lágrimas caírem em silêncio. O sol brilhava lá fora, mas dentro de mim só havia tempestade.
No Algarve, tudo era diferente: o cheiro do mar, o calor na pele, o som das gaivotas. Pela primeira vez em anos, dormi sem despertador e acordei sem pressa. Passeei pelas ruas estreitas de Tavira, comi peixe grelhado sozinha numa esplanada e escrevi no meu diário como se fosse adolescente outra vez.
Mas a paz era frágil. O telemóvel vibrava constantemente: mensagens da minha mãe a perguntar se estava bem (mas sempre com um tom de culpa), áudios da Inês a reclamar dos miúdos e até o meu pai enviou um seco “Quando voltas?”.
Na terceira noite, sentei-me na varanda da pensão e liguei à avó. Ela atendeu com voz cansada:
— Mariazinha, estás bem? A tua mãe diz que andas fugida…
— Não estou fugida, avó. Só precisava de descansar um pouco.
— Descansar… Pois. Eu também já fui nova. Mas olha que a família é tudo nesta vida. Não te esqueças disso.
Desliguei com um nó na garganta. Será que estava mesmo a ser egoísta? Ou seria apenas humana?
No regresso a casa, ninguém me esperava na estação. Entrei em casa de mansinho e encontrei a minha mãe na cozinha, a preparar o jantar.
— Olha quem voltou — disse ela sem me olhar nos olhos.
O jantar foi um desfile de silêncios pesados e olhares acusadores. A Inês nem apareceu. O meu pai limitou-se a mastigar em silêncio.
Nos dias seguintes, senti-me uma estranha na minha própria casa. As tarefas domésticas acumulavam-se à minha espera como se fossem castigos por ter ousado pensar em mim. A Inês deixou de me falar durante semanas; só me mandava recados pelos sobrinhos.
No trabalho, os colegas perguntavam como tinham sido as férias e eu respondia sempre “foram boas”, mas por dentro sentia-me mais sozinha do que nunca.
Uma noite, depois de mais uma discussão com a minha mãe sobre “prioridades”, fechei-me no quarto e chorei até não ter mais lágrimas. Peguei no diário e escrevi:
“Será que pedir um pouco de paz é assim tão grave? Será que ser filha é sinónimo de anular quem sou?”
Os meses passaram e as feridas foram sarando devagarinho. A relação com a minha irmã nunca voltou ao que era; com os meus pais ficou uma distância fria, como se eu tivesse quebrado um pacto invisível.
Mas aprendi algo importante: ninguém vai cuidar de mim se eu não cuidar primeiro. E talvez seja esse o maior tabu nas famílias portuguesas — admitir que também precisamos de colo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas à culpa por quererem um pouco de liberdade? Quantas Marias existem por aí, sufocadas entre o amor à família e o amor-próprio?
E vocês, acham mesmo que cuidar de nós é egoísmo? Ou será coragem?