Fechei os olhos para as traições dele – até cair na rua e descobrir quem realmente está ao meu lado
— Outra vez, Miguel? — perguntei, com a voz embargada, segurando o telemóvel com força enquanto lia as mensagens que ele tentava esconder. O silêncio dele do outro lado da sala era ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite, e eu sentia o peso de mais um dia fingindo que não via, que não sabia.
A nossa casa em Almada parecia cada vez mais pequena para tanto segredo. O cheiro do café frio misturava-se ao perfume barato que ele trazia na roupa. Eu fechava os olhos para não ver, para não sentir, para não explodir. “É pelo Diogo”, repetia para mim mesma, olhando para o quarto do nosso filho, onde ele dormia inocente, alheio ao caos dos adultos.
Miguel sempre foi charmoso. Quando nos conhecemos na faculdade, ele era o centro das atenções, e eu sentia-me especial por ser escolhida por ele. Casámos cedo, talvez cedo demais. A minha mãe avisou-me: “Filha, cuidado com quem brilha demais. Às vezes, é só reflexo dos outros.” Ignorei. Achei que o amor bastava.
Os primeiros anos foram felizes. Comprámos o nosso apartamento com vista para o Tejo, fizemos planos de viagens e filhos. Mas depois do nascimento do Diogo, tudo mudou. Miguel começou a chegar tarde, a inventar reuniões e jantares de trabalho. Eu queria acreditar nas desculpas, mas as provas acumulavam-se: mensagens apagadas à pressa, telefonemas sussurrados na varanda, camisas manchadas de batom.
Confrontei-o várias vezes. Ele negava, depois pedia desculpa, prometia mudar. Eu perdoava. Sempre perdoava. “A família é o mais importante”, dizia a minha sogra, olhando-me com aquele ar de quem sabe mais do que diz. Eu acreditava nisso. Aguentei humilhações calada, engoli lágrimas no banho para não assustar o Diogo.
Mas a dor foi crescendo por dentro como uma erva daninha. Comecei a perder peso, a dormir mal. No trabalho, distraía-me facilmente; os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria, mentindo: “Só cansaço”.
Naquela manhã de janeiro, o frio cortava como navalha. Saí apressada para levar o Diogo à escola e tropecei num buraco da calçada. Senti uma dor aguda no tornozelo e caí pesadamente no chão molhado. As pessoas passaram por mim apressadas, algumas olharam com pena, mas ninguém parou.
Foi a Dona Rosa, a vizinha do terceiro andar, quem me viu da janela e desceu a correr. “Menina Sofia! Está bem?” — perguntou ela, ajudando-me a levantar. As lágrimas escorriam-me pelo rosto, misturadas com a chuva fina que começava a cair.
No hospital, diagnosticaram uma entorse grave. Precisaria de repouso absoluto durante pelo menos duas semanas. Liguei ao Miguel várias vezes; ele não atendeu. Só apareceu à noite, já depois das oito.
— Desculpa, tive uma reunião importante — disse ele, sem olhar nos meus olhos.
— Miguel, eu caí na rua! Preciso de ajuda! — gritei finalmente, incapaz de conter a raiva e o desespero.
Ele suspirou fundo e foi ver televisão. Fiquei sozinha no quarto, ouvindo o som distante do televisor e o riso do Diogo brincando com os carrinhos.
Nos dias seguintes, foi Dona Rosa quem me trouxe sopa quente e ficou com o Diogo enquanto eu descansava. A minha mãe veio de Setúbal para me ajudar com as tarefas da casa. Miguel continuava ausente: saía cedo e chegava tarde. Quando estava em casa, parecia um estranho.
Uma noite ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não posso agora… Ela está em casa… Sim, logo vejo-te…
Senti um nó no estômago. Não era só traição física; era abandono emocional. Pela primeira vez em anos, permiti-me pensar: “E se eu merecer mais? E se eu puder ser feliz sem ele?”
A recuperação foi lenta e dolorosa. Mas cada dia de repouso foi também um dia de reflexão. Vi como Dona Rosa se preocupava comigo sem pedir nada em troca; como a minha mãe largou tudo para cuidar de mim; como Diogo me abraçava forte todas as noites antes de dormir.
Miguel tornou-se cada vez mais distante. Uma noite chegou embriagado e começou uma discussão sem sentido:
— Tu nunca estás satisfeita! Tudo é drama contigo! — gritou ele.
— Drama? Eu caí na rua porque estava exausta de fazer tudo sozinha! — respondi entre lágrimas.
Ele saiu batendo a porta. Fiquei ali sentada no chão da cozinha, sentindo-me vazia e derrotada.
No dia seguinte, Dona Rosa entrou sem bater:
— Sofia, não pode continuar assim. Você é jovem demais para viver triste.
As palavras dela ecoaram dentro de mim como um grito de alerta. Pela primeira vez em muito tempo, olhei-me ao espelho e vi uma mulher cansada, mas ainda viva.
Comecei a procurar ajuda psicológica no centro de saúde local. Partilhei as minhas dores com uma terapeuta chamada Carla, que me fez ver que eu não era culpada pelas escolhas do Miguel.
Um dia decidi falar com ele seriamente:
— Miguel, precisamos conversar.
Ele revirou os olhos:
— Outra vez?
— Sim, outra vez. Eu já não consigo viver assim. Quero separar-me.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos e depois disse:
— Faz como quiseres.
Foi como se um peso saísse dos meus ombros. Liguei à minha mãe e contei-lhe tudo. Ela chorou comigo ao telefone:
— Filha, estou tão orgulhosa de ti! Finalmente escolheste-te a ti própria.
A separação foi difícil; houve discussões sobre guarda do Diogo e divisão dos bens. Miguel tentou manipular-me emocionalmente várias vezes:
— Vais destruir a família por um capricho teu?
Mas eu mantive-me firme. Apoiada pela minha mãe e pela Dona Rosa, consegui alugar um pequeno apartamento perto da escola do Diogo.
Os primeiros meses foram duros: noites sem dormir, contas para pagar sozinha, medo do futuro. Mas também houve momentos de paz inédita: cozinhar com o Diogo ao som da rádio; passeios ao domingo pela marginal; risos sinceros à mesa.
Miguel tentou voltar algumas vezes:
— Sinto falta de vocês… Podemos tentar outra vez?
Mas eu já não era a mesma Sofia ingénua que fechava os olhos às traições por medo da solidão.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci. Aprendi que amor próprio não é egoísmo; é sobrevivência. Que família não é só sangue ou papel passado — é quem está ao nosso lado quando mais precisamos.
Às vezes ainda sinto saudade do que sonhei para nós dois. Mas sei que mereço mais do que migalhas de atenção ou promessas vazias.
E vocês? Quantas vezes já fecharam os olhos para não ver o óbvio? Será que vale mesmo a pena sacrificar a nossa felicidade pelos erros dos outros?