Fechei os olhos para a traição dele – até cair na rua e descobrir quem realmente estava ao meu lado
— Vais mesmo sair outra vez, Miguel? — perguntei, tentando controlar o tremor na minha voz enquanto ele procurava as chaves no bolso.
Ele nem olhou para mim. — Tenho uma reunião com o pessoal do escritório. Não me esperes acordada.
A porta bateu com força. O silêncio que ficou ecoou pela casa, misturando-se ao som abafado da televisão na sala onde o meu filho, Tiago, fingia não perceber nada. Eu sabia, claro que sabia. As mensagens trocadas às escondidas, os perfumes diferentes na roupa, as desculpas esfarrapadas. Mas fechei os olhos. Fechei os olhos porque tinha medo de perder tudo: a casa, a rotina, a família que construímos juntos. Cresci a ouvir a minha mãe dizer que mulher de verdade aguenta firme pelo bem dos filhos. E eu aguentei. Aguentei até não saber mais quem era.
As noites eram longas. Deitava-me ao lado de um corpo ausente, sentindo o colchão afundar do outro lado sem nunca sentir calor. O Tiago começou a perguntar por que o pai chegava tão tarde. Eu inventava histórias: trânsito, trabalho, cansaço. Ele olhava para mim com aqueles olhos grandes e castanhos, tão parecidos com os meus, e eu sentia uma culpa esmagadora.
No trabalho, fingia normalidade. A minha colega, Dona Lurdes, às vezes lançava-me olhares de pena. — Está tudo bem em casa, Ana? — perguntava baixinho na copa.
Eu sorria, forçando uma alegria que não sentia. — Está tudo ótimo, Dona Lurdes. Só um pouco cansada.
Mas a verdade é que eu estava exausta de fingir. O peso da mentira era como uma pedra no peito.
Naquele dia chovia muito. Saí do supermercado carregada de sacos, apressada porque o Tiago tinha treino de futebol e eu ainda precisava fazer o jantar. O chão estava escorregadio e, de repente, senti o pé fugir-me. Caí com força, ouvi um estalo e uma dor aguda atravessou-me a perna.
As pessoas correram para ajudar. Alguém chamou uma ambulância. Lembro-me de olhar para o céu cinzento e pensar: “É agora que tudo desaba”.
No hospital, entre as luzes brancas e o cheiro a desinfetante, liguei ao Miguel. Ele atendeu ao terceiro toque.
— Miguel… caí na rua. Estou no hospital. Acho que parti a perna.
Silêncio do outro lado.
— Não posso sair agora, Ana. Estou numa reunião importante. Vê se alguém te vai buscar.
Desligou antes que eu pudesse responder. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto, misturando-se com a chuva ainda fresca no meu cabelo.
A enfermeira entrou no quarto e viu-me assim.
— Quer que ligue a alguém da família?
Pensei em ligar à minha mãe, mas ela morava longe e sempre dizia que eu devia resolver os meus problemas sozinha. Pensei na minha irmã, mas estávamos afastadas há anos por causa de uma discussão parva sobre herança.
Foi então que ouvi uma voz familiar à porta do quarto.
— Mãe! — O Tiago entrou a correr, acompanhado pela Dona Lurdes.
— A Dona Lurdes foi buscar-me à escola quando viu que não apareceste — explicou ele, agarrando-me a mão com força.
Olhei para aquela mulher simples, de mãos calejadas e sorriso sincero, e senti uma gratidão imensa.
— Não podia deixar-te sozinha — disse ela baixinho. — Já vi muita mulher boa sofrer calada nesta vida. Não deixes que te destruam também.
Fiquei internada três dias. O Miguel apareceu apenas uma vez, no segundo dia, com um ramo de flores baratas e um ar impaciente.
— Quando é que voltas para casa? Preciso de alguém para tratar das coisas — disse ele sem rodeios.
Olhei para ele como se fosse um estranho. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Precisas de mim ou precisas de uma empregada? — perguntei, surpreendendo-me com a firmeza da minha voz.
Ele encolheu os ombros e saiu sem responder.
Naquela noite, Dona Lurdes ficou comigo até tarde. Falámos sobre tudo: sobre amores perdidos, sobre sonhos adiados, sobre coragem e medo.
— Sabes, Ana — disse ela — às vezes é preciso cair para perceber quem nos levanta.
Quando finalmente voltei para casa, tudo parecia igual mas nada era igual. O Tiago ajudava-me em tudo: fazia o chá, trazia-me livros, sentava-se ao meu lado em silêncio quando eu chorava baixinho à noite. O Miguel continuava ausente, cada vez mais frio e distante.
Uma noite ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não te preocupes, amor. Ela não desconfia de nada. Só está um pouco limitada por causa da perna… Sim, amanhã vejo-te depois do trabalho.
Senti o sangue gelar-me nas veias. Não era só traição física; era desprezo absoluto pela minha dor.
No dia seguinte, sentei-me com o Tiago à mesa do pequeno-almoço.
— Filho… se um dia a mãe decidir mudar tudo… tu ficas comigo?
Ele olhou-me nos olhos e respondeu sem hesitar:
— Mãe, eu só quero ver-te feliz outra vez.
Foi nesse momento que percebi: estava a viver uma mentira por medo de perder algo que já não existia há muito tempo.
Procurei ajuda numa psicóloga do centro de saúde. Falei sobre tudo: sobre o medo da solidão, sobre a vergonha do fracasso, sobre o peso das expectativas familiares.
— Ana — disse ela — não és menos mulher por quereres ser feliz. Não és menos mãe por pensares em ti.
Comecei a fazer planos em segredo: procurei um apartamento pequeno perto da escola do Tiago; falei com um advogado sobre os meus direitos; contei à minha irmã sobre tudo o que estava a acontecer e pedi desculpa pelos anos perdidos em mágoas antigas.
Quando finalmente confrontei o Miguel com a decisão de me separar, ele riu-se na minha cara.
— Vais-te safar sozinha? Com essa perna partida e um filho adolescente? Boa sorte!
Mas eu já não era a mesma Ana de antes. Tinha caído no chão da rua mas levantei-me mais forte do que nunca.
A mudança foi dura: noites sem dormir, contas para pagar sozinha, medos novos todos os dias. Mas também houve momentos de alegria inesperada: jantares simples com o Tiago cheios de gargalhadas; tardes de passeio pelo parque; reencontros emocionados com a minha irmã; telefonemas diários da Dona Lurdes só para perguntar se estava tudo bem.
Hoje olho para trás e vejo aquela mulher assustada que fechava os olhos para não ver a verdade. E pergunto-me: quantas de nós vivem assim? Quantas fingem não ver para não perder? Será que vale mesmo a pena sacrificar a nossa felicidade por uma ilusão?
Se chegaste até aqui… já alguma vez fechaste os olhos para não ver aquilo que te magoa? O que te faria finalmente abrir os olhos?