Fechei os olhos às traições dele — até cair na rua e perceber quem realmente estava ao meu lado
— Não me venhas com histórias, Helena! — gritou o Rui, batendo com força a porta da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o choro abafado do nosso filho mais novo, o Miguel, que tentava esconder-se atrás do sofá. Senti o coração apertar-se, como tantas outras vezes, mas desta vez não consegui conter as lágrimas.
Quantas vezes já tinha ouvido aquela voz fria, aquele tom de desprezo? Quantas vezes fechei os olhos às mensagens no telemóvel dele, aos perfumes estranhos na roupa, às desculpas esfarrapadas de reuniões tardias? Tudo para proteger os meus filhos, para manter uma fachada de família perfeita que já não existia há muito tempo.
Lembro-me da primeira vez que desconfiei. Foi numa noite de inverno, há quase dez anos. O Rui chegou tarde, com um sorriso estranho e um cheiro doce que não era meu. Perguntei-lhe onde tinha estado e ele respondeu seco: “No trabalho, claro.” Não insisti. Tinha medo da resposta. Tinha medo de perder o pouco que ainda restava do nosso casamento.
A minha mãe sempre dizia: “Helena, casamento é para a vida toda. Aguenta, pelos teus filhos.” E eu aguentei. Aguentei insultos, ausências, olhares vazios à mesa do jantar. Aguentei porque acreditava que era o melhor para o Miguel e para a Sofia. Eles mereciam uma família unida, mesmo que fosse só de fachada.
Mas a verdade é que a fachada começou a ruir. A Sofia começou a fechar-se no quarto, a responder-me torto. O Miguel fazia birras por tudo e por nada. Eu sentia-me cada vez mais sozinha, como se vivesse numa casa cheia de gente mas sem ninguém ao meu lado.
Até ao dia em que tudo mudou.
Era uma manhã de segunda-feira. Chovia torrencialmente e eu corria para apanhar o autocarro depois de deixar o Miguel na escola. O chão estava escorregadio e, de repente, senti o pé fugir-me. Caí com força. Senti uma dor aguda na perna e tudo ficou negro.
Acordei no hospital, com uma luz branca a ferir-me os olhos e um zumbido constante nos ouvidos. Olhei à volta e vi a minha irmã, a Ana, sentada ao meu lado, com os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Helena! Finalmente! — exclamou ela, agarrando-me a mão. — Estava tão preocupada!
Perguntei pelo Rui. Ela hesitou.
— Liguei-lhe assim que soube… mas ele disse que estava ocupado no trabalho.
O vazio que senti naquele momento foi maior do que qualquer dor física. O homem com quem partilhei metade da minha vida não estava ali quando mais precisei dele. Quem estava era a Ana, que sempre me avisou sobre o Rui, mas eu nunca quis ouvir.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O Rui apareceu no hospital dois dias depois, com um ramo de flores barato e um sorriso forçado.
— Então, como estás? — perguntou ele, olhando mais para o telemóvel do que para mim.
— Achas normal só vires agora? — perguntei-lhe, tentando conter as lágrimas.
— Tive muito trabalho… Sabes como é — respondeu ele, encolhendo os ombros.
Nesse momento percebi tudo. Percebi que estava sozinha há muito tempo. Que o Rui já não fazia parte da minha vida, mesmo estando ali ao meu lado.
A recuperação foi lenta e dolorosa. A Ana vinha todos os dias ajudar-me com as crianças, trazia-me comida feita em casa e ouvia os meus desabafos sem julgar. A minha mãe também veio algumas vezes, mas limitava-se a repetir: “Tens de ser forte pelo bem dos teus filhos.” O Rui? Aparecia esporadicamente, sempre apressado, sempre com desculpas novas.
Uma noite, depois de pôr as crianças na cama, sentei-me com a Ana na sala.
— Achas que devo continuar assim? — perguntei-lhe, com a voz embargada.
Ela olhou-me nos olhos e disse:
— Helena, tu mereces ser feliz. Não fiques presa ao passado só por medo do futuro.
Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a pensar em tudo o que tinha perdido ao longo dos anos: a minha alegria, a minha autoestima, os meus sonhos. Tudo sacrificado em nome de uma família que só existia nas fotografias antigas.
Quando finalmente tive alta do hospital, decidi enfrentar o Rui.
— Precisamos de conversar — disse-lhe numa noite em que ele chegou mais cedo do trabalho.
Ele sentou-se à minha frente, impaciente.
— O que foi agora?
— Eu sei das tuas traições há anos — comecei, sentindo o coração acelerar. — Aguentei por causa dos nossos filhos, mas não aguento mais. Quero separar-me.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos e depois riu-se.
— Achas mesmo que vais conseguir sozinha? Achas que alguém vai querer uma mulher como tu?
As palavras dele magoaram-me mais do que qualquer queda ou ferida física. Mas também me deram força. Porque percebi que já não tinha nada a perder.
Os meses seguintes foram difíceis. Tive de lidar com advogados, dividir bens, explicar aos meus filhos porque é que o pai já não vivia connosco. Houve noites em que chorei até adormecer, noites em que me culpei por tudo ter acabado assim.
Mas também houve momentos de esperança. Comecei a sair mais com a Ana e as amigas dela. Voltei a rir-me de coisas simples: um café numa esplanada ao sol, uma ida ao cinema com os miúdos. Aos poucos fui recuperando partes de mim que julgava perdidas para sempre.
A Sofia aproximou-se de mim como nunca antes.
— Mãe… desculpa se às vezes fui má contigo — disse ela um dia, abraçando-me com força. — Eu só queria que fosses feliz.
O Miguel também mudou. Tornou-se mais calmo, mais sorridente. Percebi então que os filhos não precisam de pais juntos a todo o custo; precisam é de pais felizes e presentes.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Sei que perdi anos preciosos a fingir uma felicidade que não existia. Mas também sei que ganhei uma nova vida — mais verdadeira, mais minha.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam presas ao medo e à vergonha? Quantas fecham os olhos à dor só para manter as aparências? Será que vale mesmo a pena sacrificar-nos assim?
E vocês? O que fariam no meu lugar?