Expulsei o meu filho e a nora de casa: Só então percebi quantos anos vivi presa à culpa
— Mãe, não podes fazer isto connosco! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva e desespero, enquanto a Ana, a sua mulher, se encolhia atrás dele, segurando o casaco e o saco de viagem. Eu estava de pé, junto à porta do corredor, com as mãos a tremer e o coração a bater tão forte que quase não conseguia ouvir mais nada.
Durante anos, temi este momento. Sempre pensei que uma mãe devia aguentar tudo, suportar tudo, mesmo quando já não tinha forças. Mas naquele instante, com o Rui a olhar-me como se eu fosse uma estranha, percebi que já não era só a minha casa que estava em jogo — era a minha vida.
Tudo começou há muitos anos, quando o meu marido, o António, morreu num acidente de carro. O Rui tinha apenas 14 anos. Fiquei sozinha, com um filho adolescente e uma mãe idosa para cuidar. Trabalhei como empregada de balcão numa pastelaria em Almada, fazia turnos duplos, trazia bolos que sobravam para casa e, à noite, chorava baixinho para não acordar ninguém. O Rui era tudo para mim. Prometi a mim mesma que nunca lhe faltaria nada, que seria mãe e pai, que faria tudo para que ele tivesse uma vida melhor do que a minha.
Mas talvez tenha feito demais. Talvez tenha dado tanto que ele nunca aprendeu a dar valor. Quando o Rui foi para a universidade, vendi as poucas jóias que eram da minha mãe para lhe pagar os livros e o passe. Quando arranjou o primeiro emprego, deixei-o ficar em casa, sem pagar renda, porque “estava a começar a vida”. Quando trouxe a Ana para casa — uma rapariga doce, mas insegura, que vinha de uma família complicada — abri-lhes as portas, preparei-lhes o quarto, fiz-lhes sopa e comprei-lhes toalhas novas.
No início, era tudo harmonia. A Ana ajudava-me a pôr a mesa, o Rui contava-me histórias do trabalho, e eu sentia que, apesar de tudo, tinha conseguido construir um lar. Mas com o tempo, as coisas mudaram. O Rui começou a chegar tarde, a Ana fechava-se no quarto, e eu sentia-me uma intrusa na minha própria casa. As discussões começaram por coisas pequenas — a loiça por lavar, o leite que desaparecia do frigorífico, as contas que eu continuava a pagar sozinha.
— Mãe, não podes ser assim tão controladora — dizia o Rui, quando eu lhe pedia para ajudar nas despesas.
— Não é controlar, filho. É só pedir um pouco de respeito. Isto ainda é a minha casa.
Ele revirava os olhos, e a Ana ficava calada, olhando para o chão. Eu sentia-me cada vez mais sozinha, como se tivesse criado um estranho. A culpa corroía-me. Será que falhei como mãe? Será que devia ter sido mais dura? Ou mais compreensiva?
As coisas pioraram quando perdi o emprego. A pastelaria fechou, e com 58 anos ninguém queria saber de mim. Passei a viver do subsídio de desemprego e das pequenas limpezas que fazia para vizinhas. O Rui e a Ana continuavam em casa, agora ambos desempregados, mas nem assim ajudavam. Passavam os dias no sofá, a ver televisão ou no telemóvel. Eu fazia-lhes o jantar, lavava-lhes a roupa, e eles nem um obrigado diziam.
Uma noite, depois de um dia particularmente difícil, entrei na sala e vi-os a discutir. O Rui gritava com a Ana por causa de uma mensagem no telemóvel. Ela chorava baixinho. Senti-me invadida por uma raiva antiga, uma exaustão que já não conseguia esconder.
— Basta! — gritei. — Não aguento mais! Esta casa não é um hotel! Ou começam a ajudar ou vão-se embora!
O Rui levantou-se de rompante.
— Achas que é fácil? Achas que não tentamos? Tu é que nunca confiaste em mim! Sempre me fizeste sentir um inútil!
— Eu só queria que fosses feliz… — murmurei, mas ele já não me ouvia.
Nos dias seguintes, o ambiente tornou-se insuportável. A Ana mal saía do quarto. O Rui ignorava-me. Eu andava pela casa como uma sombra, a arrumar, a limpar, a tentar apagar os rastos da tristeza. Até que uma tarde, ao chegar da rua, encontrei a Ana a chorar na cozinha. Sentei-me ao lado dela.
— O que se passa, filha?
Ela olhou-me com olhos vermelhos.
— O Rui… ele está diferente. Anda nervoso, grita comigo por tudo e por nada. Eu não sei o que fazer.
Senti uma dor funda. Abracei-a, mas percebi que já não podia proteger ninguém. Nem ela, nem o meu filho. Nem a mim própria.
Foi nessa noite que tomei a decisão. Fui ao quarto deles, bati à porta.
— Amanhã quero que arranjem as vossas coisas. Precisam de sair. Eu já não consigo viver assim.
O Rui olhou-me como se eu o tivesse traído. A Ana começou a chorar. Eu fechei a porta e fui para o meu quarto, onde chorei até adormecer.
No dia seguinte, enquanto eles arrumavam as malas, senti-me dividida entre o alívio e a culpa. O Rui não me falou. A Ana abraçou-me antes de sair.
— Obrigada por tudo, Dona Teresa. Desculpe qualquer coisa.
Fiquei sozinha na casa vazia. Durante semanas, andei como um fantasma. Os vizinhos perguntavam por eles, e eu respondia com um encolher de ombros. A minha mãe já tinha morrido há anos. Não tinha ninguém com quem falar. Só o silêncio e o eco das minhas próprias escolhas.
Com o tempo, comecei a respirar melhor. A casa estava limpa, silenciosa. Voltei a ler os meus livros antigos, a cuidar das plantas na varanda. Mas a culpa não desapareceu. Perguntava-me todos os dias: fui má mãe? Devia ter aguentado mais? Ou finalmente fiz aquilo que devia ter feito há muito tempo?
Um dia, o Rui ligou-me. A voz dele era fria.
— Só te ligo para dizer que estamos bem. Não te preocupes.
Quis perguntar-lhe se precisava de alguma coisa, mas calei-me. Percebi que, pela primeira vez em muitos anos, tinha posto limites. E talvez fosse isso que sempre faltou entre nós.
Agora, sento-me à janela e olho para a rua. Vejo mães com filhos pequenos, a correr atrás deles no parque. Penso em tudo o que dei, em tudo o que perdi. Será que algum dia o Rui vai perceber o que fiz por ele? Será que alguma vez vou deixar de sentir esta culpa?
E vocês, acham que uma mãe tem o direito de dizer basta? Ou será que o amor de mãe deve mesmo aguentar tudo?