Expulsa Como um Cão – A Minha História de Sobrevivência em Lisboa

— Sai já daqui, Mariana! Não quero ver-te nem mais um minuto nesta casa! — gritou a minha mãe, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. O meu pai, calado, olhava para o chão, incapaz de me encarar. Senti o peito apertar, as pernas tremerem. A chuva batia forte nas janelas do nosso apartamento em Benfica, como se Lisboa inteira chorasse comigo.

A minha mochila já estava feita. Tinha-a preparado às escondidas, como quem prepara uma fuga. Mas nunca pensei que aquele momento chegasse mesmo. O meu irmão, Tiago, encostado à porta do quarto, murmurou:

— Se calhar é melhor ires mesmo, Mariana. Só arranjas problemas.

Aquelas palavras doeram mais do que qualquer grito. Eu? A filha certinha, a que sempre tirou boas notas, a que cuidava da avó quando ela estava doente? Como é que tudo se virou assim contra mim?

Tudo começou há três meses, quando contei à minha mãe que queria mudar de curso na faculdade. Estava em Direito, mas sentia-me sufocada. Queria estudar Belas-Artes, seguir o meu sonho de pintar. Ela ficou furiosa. “Pintora? Vais morrer à fome!”, gritava ela todos os dias. O meu pai tentava acalmar as coisas, mas era sempre ela quem mandava.

As discussões tornaram-se diárias. Eu sentia-me cada vez mais isolada naquela casa. O Tiago começou a afastar-se de mim, talvez por medo de ser arrastado para o meio da tempestade. A minha mãe vasculhava o meu quarto à procura de provas de que eu andava “metida em más companhias”. Um dia encontrou um maço de tabaco na minha gaveta — era da Rita, uma amiga minha — e foi o suficiente para me chamar de tudo.

Naquela noite fatídica, depois de mais uma discussão sobre o futuro, ela perdeu o controlo. “Se queres ser artista, vai viver como os artistas: na rua!” E assim fui posta fora de casa.

Desci as escadas do prédio com as mãos a tremer. Lá fora, a chuva caía sem piedade. Senti-me como um cão abandonado, sem rumo nem abrigo. Caminhei pela Avenida Gomes Pereira sem saber para onde ir. O telemóvel vibrava com mensagens da Rita: “Onde estás? Precisas de ajuda?” Mas não queria ser um peso para ninguém.

Sentei-me num banco de jardim no Largo da Luz. O frio entrava-me pelos ossos. Olhei para as luzes dos carros a passar e pensei: “Como é possível que tudo tenha mudado tão depressa?” Lembrei-me dos natais felizes em família, das tardes a pintar com a minha avó no quintal… Agora era só eu e o vazio.

As horas passaram devagar. Tentei dormir ali mesmo, mas o vento e o medo não deixavam. Por volta das três da manhã, decidi ir até à casa da Rita em Campo de Ourique. Toquei à campainha com mãos geladas.

— Mariana?! — exclamou ela ao abrir a porta, enrolada numa manta. — O que aconteceu?

Desatei a chorar como uma criança perdida. Ela abraçou-me forte e levou-me para dentro.

— Ficas aqui o tempo que precisares — disse ela, determinada.

Nos dias seguintes, tentei encontrar algum sentido para tudo aquilo. Procurei trabalho em cafés e lojas, mas ninguém queria contratar alguém sem experiência e com ar de quem não dorme há dias. A Rita fazia o que podia para me animar, mas eu sentia-me um fardo.

Uma noite, ouvi-a ao telefone com a mãe:

— Ela está mesmo mal… Não sei o que fazer…

Senti vergonha. Pensei em voltar para casa, pedir desculpa à minha mãe só para ter um teto. Mas algo dentro de mim gritava que não podia desistir dos meus sonhos outra vez.

Comecei a pintar freneticamente no pequeno terraço da Rita. Usava folhas velhas e tintas baratas. Era como se cada pincelada fosse um grito de liberdade e dor ao mesmo tempo.

Um dia, a Rita trouxe uma amiga dela, a Sofia, que trabalhava numa galeria no Príncipe Real.

— Mariana, tens mesmo talento — disse ela ao ver os meus quadros espalhados pelo chão. — Porque não expões aqui na galeria? Temos uma mostra de jovens artistas daqui a duas semanas.

O coração disparou. Pela primeira vez em meses senti esperança.

Passei dias e noites a pintar. A Rita ajudou-me a montar tudo na galeria no dia da inauguração. Quando vi as pessoas pararem diante dos meus quadros — alguns emocionados, outros curiosos — percebi que talvez houvesse um lugar para mim neste mundo.

No final da noite, vendi dois quadros. Não era muito dinheiro, mas era mais do que alguma vez tinha conseguido sozinha.

Recebi uma mensagem do Tiago: “Vi as tuas pinturas na net… Parabéns.” Não consegui evitar chorar outra vez — desta vez de alívio.

Algumas semanas depois, recebi um email da minha mãe: “Se quiseres vir buscar as tuas coisas, avisa.” Frio e distante. Mas pelo menos era um sinal.

Fui lá num domingo à tarde. O meu pai abriu-me a porta em silêncio. A minha mãe ficou na cozinha, fingindo não me ver. O Tiago deu-me um abraço rápido antes de sair para jogar futebol com os amigos.

Enquanto arrumava as minhas coisas em sacos pretos do lixo, ouvi a minha mãe murmurar:

— Espero que estejas feliz com a tua escolha…

Olhei para ela e respondi:

— Não foi fácil… Mas pela primeira vez sinto-me eu própria.

Saí daquela casa com menos peso nos ombros do que quando entrei.

Hoje vivo num pequeno quarto alugado em Arroios e continuo a pintar sempre que posso. Ainda sinto falta da família — ou pelo menos da ideia de família que tinha antes — mas aprendi que às vezes é preciso perder tudo para nos encontrarmos.

Pergunto-me muitas vezes: quantas pessoas vivem presas ao medo de desiludir os outros? Quantos sonhos ficam por cumprir por causa disso? E vocês… já tiveram coragem de escolher vocês próprios em vez das expectativas dos outros?