“Eu Sei Que Não Sou Perfeita, Mas Tu Também Não És o Homem Que Sonhei!” – O Desabafo Que Mudou Tudo

“Eu sei que não sou perfeita, mas tu também não és o homem que sonhei!” – a minha voz ecoou pela cozinha, tremendo entre a raiva e o desespero. Rui largou o prato na bancada com um estrondo, os olhos faiscando de mágoa e cansaço. “E achas que eu não sei disso, Mariana? Achas que eu não sinto todos os dias que falhei contigo?”

O relógio marcava quase meia-noite. A casa estava mergulhada naquela penumbra pesada das discussões tardias, quando até as paredes parecem escutar. O nosso filho, Tiago, dormia no quarto ao lado, alheio à tempestade que se abatia sobre os pais. Eu sentia o coração a bater descompassado, as mãos frias de nervosismo. Como é que chegámos aqui?

Lembro-me do início: éramos dois miúdos apaixonados, cheios de sonhos e planos. Rui era divertido, espontâneo, fazia-me rir até às lágrimas. Eu era romântica, acreditava em finais felizes e em promessas eternas. Casámo-nos numa tarde de junho, com a família toda reunida na quinta dos meus pais em Sintra. A minha mãe chorou de emoção, o meu pai brindou à nossa felicidade. Naquela altura, tudo parecia possível.

Mas a vida não é um conto de fadas. Vieram as contas para pagar, as noites mal dormidas com o Tiago bebé, os empregos que não eram aquilo que esperávamos. Rui começou a chegar tarde a casa, sempre cansado, sempre com desculpas. Eu sentia-me sozinha, presa numa rotina de trabalho, casa e fraldas sujas. As conversas tornaram-se listas de tarefas: “Compraste pão?”, “Pagaste a luz?”, “Levas tu o Tiago ao médico?”

A primeira grande discussão foi por causa do dinheiro. Rui perdeu o emprego na fábrica e ficou meses a tentar encontrar outro. Eu trabalhava num escritório de advogados em Lisboa, fazia horas extra para compensar. Ele sentia-se inútil, eu sentia-me sobrecarregada. Uma noite, explodi: “Não posso ser eu a carregar tudo às costas!” Ele respondeu: “E achas que eu quero estar assim? Achas que isto é fácil para mim?”

A partir daí, algo se partiu entre nós. Começámos a evitar-nos, cada um fechado no seu mundo. As pequenas coisas irritavam-me: o modo como ele deixava as meias espalhadas pela casa, como esquecia datas importantes, como se calava quando eu mais precisava de falar. Ele dizia que eu estava sempre a reclamar, que nunca estava satisfeita.

A minha mãe percebia que algo não estava bem. Um dia, enquanto tomávamos café na varanda dela, perguntou-me: “Filha, estás feliz?” Hesitei antes de responder. “Não sei, mãe… Sinto que perdi quem eu era.” Ela apertou-me a mão: “O casamento é difícil. Mas não te esqueças de ti própria.”

As coisas pioraram quando descobri mensagens no telemóvel do Rui. Nada explícito, mas havia ali uma cumplicidade com uma colega do novo emprego dele – a Andreia. Confrontei-o numa noite chuvosa de novembro:

— Quem é a Andreia?
— É só uma colega.
— Então porque falam até à meia-noite? Porque é que lhe contas coisas que não me contas a mim?

Ele ficou em silêncio. O silêncio dele doeu mais do que qualquer palavra.

A partir desse dia, passei a desconfiar de tudo. Comecei a controlar os horários dele, a vasculhar as redes sociais à procura de sinais. Ele afastou-se ainda mais. O Tiago começou a perguntar porque é que estávamos sempre zangados.

No Natal desse ano, tentei salvar alguma coisa: organizei uma ceia só para nós os três, decorei a casa como antigamente. Mas Rui passou o jantar no telemóvel e saiu para fumar à varanda durante quase uma hora. Senti-me invisível.

No início do ano seguinte, decidi procurar terapia. Precisava de entender onde me tinha perdido no meio disto tudo. A psicóloga perguntou-me: “O que é que tu queres para ti?” Não soube responder.

As sessões ajudaram-me a perceber que eu estava presa à ideia do casamento perfeito – aquele dos filmes e das novelas portuguesas – e não à realidade da pessoa que tinha ao meu lado. Rui também aceitou ir comigo a algumas sessões. Lá dentro, longe das pressões do dia-a-dia, ele confessou:

— Sinto-me um fracasso como homem e como pai.
— E eu sinto-me sozinha ao teu lado — respondi.

Tentámos reaproximar-nos: saídas ao cinema, fins-de-semana fora em Óbidos ou na Nazaré… Mas era como tentar colar um vaso partido com fita-cola.

Um dia, depois de mais uma discussão sobre quem ia buscar o Tiago à escola, Rui atirou:

— Sabes qual é o teu problema? Nunca estás satisfeita! Queres sempre mais!
— E tu? Achas que basta estares aqui sentado no sofá para seres marido e pai?
— Pelo menos não ando à procura de outro homem para me ouvir!

Fiquei gelada. Ele sabia das conversas que eu tinha tido com um amigo antigo pelo Facebook – alguém com quem desabafei quando já não aguentava mais guardar tudo para mim.

A partir daí foi uma guerra fria dentro de casa: olhares cortantes, silêncios ensurdecedores. O Tiago começou a ter pesadelos e a pedir para dormir na nossa cama.

Uma noite, depois de adormecermos todos juntos no sofá da sala – exaustos da vida – acordei com Rui a chorar baixinho. Sentei-me ao lado dele:

— O que é que aconteceu connosco?
Ele olhou para mim com olhos vermelhos:
— Acho que nunca fomos aquilo que sonhámos um para o outro.
— Talvez não… Mas ainda somos pais do Tiago.

Decidimos separar-nos pouco depois disso. Não houve gritos nem portas a bater – só um silêncio triste e resignado. Rui foi viver para casa da mãe dele em Almada; eu fiquei com o Tiago no nosso apartamento em Benfica.

Os primeiros meses foram duros: noites em claro, saudades do barulho dele pela casa (até das meias espalhadas), culpa por ter falhado como mulher e mãe. O Tiago perguntava quando é que íamos voltar a ser uma família.

Com o tempo aprendi a viver sozinha: redescobri hobbies antigos – voltei a pintar aquarelas como fazia na adolescência –, fiz novas amigas no grupo de mães da escola do Tiago e comecei a sair mais com os meus pais.

Rui também mudou: tornou-se mais presente na vida do filho, começou a levá-lo ao futebol aos sábados e até aprendeu a cozinhar pratos novos para quando o Tiago ficava lá nos fins-de-semana.

Hoje olho para trás e percebo que ambos fomos vítimas das nossas próprias expectativas – queríamos tanto ser perfeitos um para o outro que esquecemos quem éramos realmente.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos por aquilo que não fomos? Ou será que amar alguém significa aceitar as imperfeições – as nossas e as dos outros? E vocês… já sentiram isto?