Esquecida por Todos: O Último Testamento da Avó Laurinda

— Não me venhas pedir dinheiro outra vez, Tomás! — gritei, a voz trémula, enquanto ele batia com força à porta da cozinha. O cheiro a café queimado misturava-se com o frio húmido daquela manhã de janeiro. O meu filho olhou-me com os olhos fundos, cansados, como se cada ruga no seu rosto fosse uma acusação.

— Mãe, não percebes? Preciso mesmo desta vez. A Rita ameaça ir-se embora com os miúdos se eu não pagar a renda — respondeu ele, quase num sussurro, mas com uma raiva contida que me cortou o coração.

A minha casa, outrora cheia de risos e passos apressados dos meus netos, estava agora vazia. Só o relógio de parede parecia lembrar-se de marcar o tempo. Tomás vinha apenas quando precisava de alguma coisa. Os meus netos — Diogo, Matilde e Tiago — já nem me ligavam no Natal. A última vez que ouvi a voz da Matilde foi há dois anos, num telefonema apressado: “Avó, desculpa, tenho de estudar para os exames.”

Sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremerem. O Tomás saiu sem olhar para trás. Fiquei ali, a ouvir o silêncio pesado da casa. Lembrei-me do António, o meu marido, que partiu há dez anos. Ele dizia sempre: “Laurinda, nunca deixes que a solidão te vença.” Mas como não sucumbir quando até os próprios filhos nos esquecem?

Os vizinhos falavam: “A Laurinda está cada vez mais sozinha.” Alguns vinham trazer pão ou perguntar se precisava de alguma coisa. Mas era só isso — gestos de pena, não de amor. Eu queria a minha família.

Uma noite, depois de mais uma discussão ao telefone com o Tomás — “Mãe, não percebes nada! Se tivesses ajudado mais quando eu era pequeno…” — sentei-me no meu quarto e chorei como uma criança. Senti-me pequena, inútil, um peso para todos.

Foi então que decidi escrever o meu testamento. Peguei numa folha amarelada e comecei: “Eu, Laurinda Maria dos Santos…” Hesitei. O que deixaria eu? Uma casa velha, algumas poupanças e um anel de ouro que era da minha mãe. Mas mais do que bens materiais, queria deixar-lhes uma lição.

No testamento escrevi: “A casa ficará para quem vier visitar-me nos próximos três meses.” Guardei o papel na gaveta da cómoda e esperei. Esperei dias, semanas. O telefone não tocou. Ninguém bateu à porta.

A solidão tornou-se uma sombra constante. Comecei a falar sozinha: “Será que fiz tudo errado? Será que fui uma má mãe?” Lembrava-me das festas de aniversário dos netos, das tardes no jardim a apanhar flores com a Matilde. Onde estavam agora esses dias?

Um domingo à tarde ouvi passos no quintal. O coração acelerou. Era o Diogo? Não… Era só o carteiro com uma carta do banco.

O tempo passou devagar. O inverno deu lugar à primavera e as flores começaram a nascer no jardim abandonado. Eu já mal conseguia sair da cama. As dores nas pernas eram insuportáveis e a cabeça andava sempre à roda.

Na última semana de abril senti que o fim estava próximo. Escrevi uma carta ao Tomás: “Meu filho, perdoa-me se falhei contigo. Só queria sentir-me amada.” Deixei-a em cima da mesa da cozinha.

Na manhã seguinte acordei com vozes na sala. Ouvi o Tomás discutir com a Rita:

— Ela não pode ter feito isto! Como é que vamos ficar sem a casa?
— Se tivesses vindo vê-la mais vezes… — respondeu a Rita, fria.

Ouvi-os remexerem nas gavetas à procura do testamento. Senti uma tristeza profunda — nem no fim consegui o que queria: amor verdadeiro.

Quando finalmente entraram no meu quarto, já eu estava demasiado fraca para falar. O Tomás ajoelhou-se ao meu lado:

— Mãe… desculpa…

Olhei-o nos olhos e vi lágrimas sinceras pela primeira vez em muitos anos. Apertei-lhe a mão com as poucas forças que me restavam.

— Só queria que estivesses aqui… — murmurei.

Fechei os olhos e deixei-me levar pela recordação dos risos dos meus netos, do cheiro a pão quente nas manhãs felizes.

Agora pergunto-me: porque esperamos sempre pelo fim para dizermos o que sentimos? Será que ainda há tempo para perdoar e recomeçar? E vocês, já disseram hoje a alguém que amam?