Esquecida pelos Meus: O Ultimato de uma Mãe

— Não aguento mais, Miguel! — gritei, a voz embargada, enquanto segurava a chávena de chá com as mãos trémulas. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e eu ainda estava de pé, a arrumar a loiça do jantar que preparei sozinha para mim. — Não posso continuar a viver assim, como se fosse um móvel velho nesta casa.

Miguel, o meu filho mais velho, olhou-me com aquele ar cansado de quem só veio porque a mulher insistiu. — Mãe, estás a exagerar. Sabes que tenho muito trabalho. A Marta também anda cheia de coisas com os miúdos. Não é fácil para ninguém.

— Não é fácil? — interrompi, sentindo o coração apertar-se no peito. — Achas que foi fácil para mim criar-vos sozinha depois que o vosso pai morreu? Achas que foi fácil abrir mão dos meus sonhos para vos dar tudo?

O silêncio caiu pesado entre nós. Lembrei-me de quando eram pequenos e corriam pela casa, os risos enchendo os corredores. Agora, só o eco das minhas próprias palavras me fazia companhia.

— Mãe, não é isso… — tentou justificar-se, mas eu já não queria ouvir desculpas.

— Chega! — bati com a mão na mesa, surpreendendo até a mim mesma. — Ou vocês começam a ajudar-me, ou vendo esta casa e vou para um lar. Não vou morrer aqui sozinha à espera de uma visita vossa ao domingo.

Miguel levantou-se abruptamente. — Não podes fazer isso! Esta casa é nossa! É onde crescemos!

— Pois é — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Mas agora parece que só serve para guardar memórias e pó.

Naquela noite, depois de Miguel sair sem sequer me dar um beijo de despedida, sentei-me na sala escura e deixei as lágrimas correrem. Oiço muitas vezes dizer que os filhos são o espelho dos pais. Se assim for, onde errei? Dei-lhes tudo: amor, comida quente na mesa, roupa lavada, colo nas noites de febre e medo. E agora? Agora sou invisível.

No dia seguinte, acordei com o som do telemóvel a vibrar. Era a minha filha mais nova, Inês.

— Mãe… O Miguel ligou-me ontem à noite. O que se passa? Estás bem?

A voz dela era doce, mas distante. Senti-me pequena ao explicar-lhe o que sentia.

— Estou cansada, filha. Sinto-me sozinha nesta casa enorme. Preciso de ajuda. Preciso de vocês.

Do outro lado ouvi um suspiro. — Eu sei que temos estado ausentes… Mas sabes como é, o trabalho, as crianças…

— Inês, eu também trabalhei toda a vida. E nunca deixei de ser vossa mãe por isso.

Houve um silêncio desconfortável.

— Queres mesmo vender a casa?

— Quero garantir o meu futuro. Se não posso contar convosco agora, tenho de pensar em mim.

Depois dessa conversa, passaram-se dias sem notícias deles. O telefone tocava menos ainda. Os vizinhos começaram a reparar que eu já não saía tanto à rua. A solidão era um manto pesado sobre os meus ombros.

Uma tarde, enquanto regava as flores do jardim — as mesmas que plantei com o António há mais de trinta anos — vi a vizinha Rosa aproximar-se.

— Maria do Carmo, está tudo bem? Tens andado tão calada…

Desabei ali mesmo, entre as roseiras e as hortênsias.

— Sinto-me tão sozinha, Rosa… Os meus filhos quase não aparecem. Só me procuram quando precisam de alguma coisa.

Ela abraçou-me com força. — Tens de pensar em ti, minha querida. Já fizeste tanto por eles…

Naquela noite tomei uma decisão: marquei uma reunião com todos os meus filhos para o domingo seguinte. Preparei um bolo de laranja como nos velhos tempos e sentei-me à cabeceira da mesa da sala de jantar.

Quando chegaram, notei logo o desconforto nos rostos deles. O Miguel evitava o meu olhar; a Inês mexia nervosamente no telemóvel; o Pedro, o do meio, parecia alheado como sempre.

— Obrigada por terem vindo — comecei, tentando manter a voz firme. — Quero falar convosco sobre o meu futuro e sobre esta casa.

O Pedro foi o primeiro a reagir:

— Mãe, não podes vender isto! É tudo o que temos do pai!

Olhei-o nos olhos:

— E eu? O que têm de mim?

O silêncio foi cortante.

— Eu preciso de companhia, de ajuda nas tarefas da casa, de alguém que vá comigo às consultas… Não quero ser um peso para vocês. Mas também não quero ser esquecida.

A Inês chorava baixinho. O Miguel mantinha-se calado.

— Se não podem ou não querem ajudar-me, vou vender a casa e ir para um lar onde pelo menos tenha companhia e cuidados.

A Marta, mulher do Miguel, tentou intervir:

— Maria do Carmo, nós gostamos muito de si… Só não sabemos como ajudar.

— Basta aparecerem mais vezes. Basta ligarem-me sem ser só para pedir favores ou dinheiro. Basta perguntarem se estou bem.

O Pedro levantou-se e veio abraçar-me:

— Desculpa, mãe… Fomos egoístas.

Naquele momento senti um misto de alívio e tristeza. Era preciso chegar ao limite para me ouvirem?

Os dias seguintes trouxeram pequenas mudanças: telefonemas mais frequentes, visitas inesperadas ao fim da tarde, ajudas nas compras e nas limpezas pesadas da casa. Mas também trouxe discussões entre eles sobre quem ficaria com a casa se eu morresse; ouvi conversas sussurradas sobre partilhas e heranças.

Uma noite ouvi Miguel e Inês na cozinha:

— Achas mesmo que ela vai vender? — perguntou Inês.

— Não sei… Mas se vender ficamos sem nada do pai.

Senti uma dor aguda no peito. Afinal era só isso que lhes importava? O património?

No dia seguinte chamei-os à sala:

— Se estão preocupados com heranças, podem descansar: já tratei do testamento. Mas quero deixar claro: prefiro viver tranquila num lar do que morrer sozinha nesta casa cheia de memórias vazias.

A partir desse dia comecei a procurar lares de idosos na zona. Visitei alguns com a Rosa e até gostei de um em particular: tinha jardim e muitas atividades para os residentes. Senti-me estranhamente em paz ali.

Quando contei aos meus filhos que estava decidida a mudar-me no final do verão, houve lágrimas e promessas renovadas de mudança. Mas eu já não acreditava em promessas; aprendi tarde demais que amor também se cuida no presente.

No último jantar em família antes da mudança definitiva para o lar, olhei para os meus filhos à mesa:

— Sei que fiz tudo por vocês… Mas agora preciso fazer algo por mim.

Miguel chorou pela primeira vez desde criança; Inês abraçou-me como se tivesse cinco anos outra vez; Pedro ficou calado mas apertou-me a mão com força.

Agora escrevo estas linhas do meu quarto no lar da Senhora da Luz. Tenho companhia todos os dias e até aprendi a jogar cartas com outras senhoras da minha idade. Sinto falta dos meus filhos? Claro que sim. Mas sinto ainda mais falta da Maria do Carmo que fui antes de ser só mãe.

Pergunto-me muitas vezes: será que os filhos percebem mesmo tudo o que uma mãe sacrifica? Ou só damos valor quando já é tarde demais? E vocês… acham justo uma mãe ter de escolher entre o amor dos filhos e a própria dignidade?