Escondida no Trabalho para Fugir do Meu Marido: Um Desabafo de Sofia

— Vais chegar tarde outra vez, Sofia? — perguntou o Rui, a voz carregada de desconfiança, enquanto eu calçava os sapatos no corredor. O relógio marcava sete e meia da manhã, mas a tensão já se fazia sentir como se fosse meia-noite.

— Tenho uma reunião importante, Rui. Não posso faltar — respondi, tentando não cruzar o olhar dele. Sabia que, se o fizesse, veria aquele misto de mágoa e raiva que se tornara habitual nos últimos meses.

Ele bufou, largando a chávena de café na bancada com força suficiente para me fazer estremecer. — Sempre as tuas reuniões. Parece que preferes estar lá do que aqui em casa.

Não respondi. Peguei na mala e saí, sentindo o peso da porta a fechar-se atrás de mim como um alívio momentâneo. O ar frio da manhã lisboeta bateu-me no rosto, acordando-me para a realidade: eu estava a fugir. Não era só do Rui, era de mim própria, da mulher que me tornei desde que o nosso casamento começou a desmoronar.

No autocarro, encostei a testa ao vidro embaciado e deixei os pensamentos correrem soltos. Lembrei-me dos primeiros anos com o Rui: os passeios à beira-rio, as conversas intermináveis sobre sonhos e viagens, as promessas sussurradas ao ouvido nas noites quentes de verão. Onde é que tudo se perdeu? Quando é que deixámos de ser cúmplices para nos tornarmos estranhos?

O trabalho tornou-se o meu esconderijo. No escritório da empresa de seguros onde sou administrativa, ninguém me julga por querer ficar até mais tarde. Pelo contrário: a minha chefe, Dona Teresa, até me elogia pela dedicação.

— Sofia, és um exemplo para todos aqui — disse ela um dia, pousando uma mão maternal no meu ombro. Sorri-lhe, mas por dentro sentia-me uma fraude. Ninguém sabia que aquelas horas extra eram apenas uma desculpa para não voltar para casa.

As colegas começaram a reparar. A Marta, sempre tão direta, abordou-me na copa:

— Tu e o Rui estão bem? Tens andado tão calada…

— Está tudo bem — menti, mexendo no chá como se procurasse respostas no fundo da chávena.

Mas não estava tudo bem. Em casa, o Rui tornara-se um estranho impaciente. Pequenas discussões transformavam-se em tempestades. O jantar era um campo minado: qualquer palavra podia ser o rastilho para uma explosão.

— Não percebo porque é que nunca queres conversar — atirava ele.

— Porque cada conversa acaba em discussão! — respondia eu, já sem forças para manter a voz baixa.

A verdade é que ambos estávamos exaustos. O Rui perdera o emprego há seis meses e desde então parecia ter perdido também a vontade de lutar. Passava os dias entre o sofá e o computador, enviando currículos e jogando FIFA para esquecer a frustração. Eu tentava compreender, mas sentia-me sozinha naquela casa cheia de silêncios pesados.

Uma noite, cheguei tarde do trabalho e encontrei-o sentado à mesa da cozinha, uma garrafa de vinho quase vazia à frente.

— Achas que eu não vejo? — disse ele, sem levantar os olhos. — Que te escondes no trabalho para não teres de estar comigo?

Sentei-me à sua frente, as mãos trémulas. — Não é isso…

— É sim! — gritou ele, batendo com o punho na mesa. — Já nem pareces a mesma pessoa. Onde está a Sofia que eu conheci?

As lágrimas vieram sem aviso. — Eu também não sei onde ela está, Rui…

O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Naquela noite dormi no sofá, abraçada a uma almofada como se fosse um salva-vidas.

Os dias seguintes foram uma sucessão de rotinas vazias: acordar cedo, sair antes dele levantar, chegar tarde e fingir que estava tudo bem. No trabalho, mergulhava nos papéis e nos emails como quem se afoga de propósito para não ter de pensar.

Certa tarde, Dona Teresa chamou-me ao gabinete.

— Sofia, desculpa perguntar… Mas está tudo bem em casa? Tens andado tão ausente…

Baixei os olhos. Pela primeira vez em meses senti vontade de contar a verdade a alguém.

— Não está fácil… O Rui perdeu o emprego e… Eu sinto-me perdida.

Ela suspirou e ofereceu-me um chá quente. — Sabes, querida… Às vezes fugimos porque temos medo de enfrentar aquilo que dói. Mas fugir não resolve nada.

Saí do gabinete com as palavras dela a ecoar-me na cabeça. E se ela tivesse razão? E se eu estivesse apenas a adiar o inevitável?

Nessa noite cheguei mais cedo a casa. O Rui estava na sala, olhar perdido na televisão desligada.

— Podemos conversar? — perguntei.

Ele acenou com a cabeça, sem dizer nada.

Sentei-me ao lado dele e respirei fundo. — Eu sei que tens passado por um momento difícil… Mas eu também estou a sofrer. Sinto que estamos cada vez mais longe um do outro e não sei como voltar atrás.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas. — Eu também não sei… Mas queria tentar.

Chorámos juntos naquela noite. Pela primeira vez em muito tempo senti que talvez ainda houvesse esperança.

Os dias seguintes foram feitos de pequenos gestos: jantares simples cozinhados a dois, passeios curtos pelo bairro, conversas tímidas sobre o futuro. Não foi fácil nem imediato. Houve recaídas, discussões e silêncios desconfortáveis. Mas havia vontade de reconstruir.

No trabalho continuei dedicada, mas já não precisava das horas extra como escudo. Aos poucos fui recuperando partes de mim que julgava perdidas: a alegria de rir sem motivo, o prazer das pequenas rotinas partilhadas.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas vivem presas em rotinas que as sufocam? Quantos casamentos sobrevivem apenas porque ninguém tem coragem de enfrentar o que dói? Será possível recomeçar quando tudo parece perdido?

E vocês? Já sentiram vontade de fugir da vossa própria vida? O que fariam diferente se tivessem coragem de enfrentar os vossos medos?