Entre Sombras e Luzes: Reflexos de Uma Vida Após os 70

— Diz-me, Maria, o que mudou em ti desde que passaste dos setenta? — perguntou Teresa, pousando a chávena com um tilintar suave, mas o olhar dela era tudo menos leve.

Fiquei em silêncio. O relógio da parede marcava as horas com uma precisão cruel, cada tic-tac a lembrar-me que o tempo não perdoa. Olhei para as minhas mãos enrugadas, para as veias salientes que antes eram lisas e firmes. Respirei fundo, sentindo o peso dos anos nos pulmões.

— Mudou tudo e não mudou nada — respondi, tentando sorrir. — Mas há coisas que só se revelam quando o corpo já não corre atrás dos filhos nem dos sonhos.

Teresa sorriu de lado. — Sempre foste poética, Maria. Mas fala-me a sério. O que é que sentes agora?

Olhei para ela e vi a minha própria inquietação refletida nos olhos dela. Teresa tinha acabado de fazer setenta anos. Eu já ia nos setenta e oito. Sabia bem o que ela queria ouvir: não era consolo, era verdade.

— Sinto-me invisível — confessei. — Às vezes parece que deixei de existir para os outros. Os meus filhos vêm cá aos domingos, perguntam se preciso de alguma coisa, mas não querem saber das respostas. O António… — a voz falhou-me ao lembrar o meu marido, falecido há três anos — ele era o único que me via mesmo.

Teresa ficou calada. O silêncio entre nós era pesado, como se as paredes da cozinha se tivessem aproximado um pouco mais.

— E com os teus filhos? — arriscou ela.

Soltei um riso amargo.

— O Pedro só fala de trabalho. A Marta vive em Lisboa e acha que tudo se resolve com uma chamada de vídeo ao domingo à noite. E eu aqui, nesta casa grande demais para uma só pessoa, a ouvir os ecos do passado.

Teresa pousou a mão sobre a minha. — Nunca falaste disso assim.

— Porque ninguém quer ouvir — respondi. — Todos querem acreditar que envelhecer é só ter mais tempo livre e menos preocupações. Mas ninguém fala da solidão, do medo de adormecer e não acordar, ou pior ainda: acordar e perceber que ninguém deu pela nossa falta.

Ela apertou-me os dedos com força.

— Eu dou pela tua falta, Maria.

Sorri-lhe com gratidão, mas sabia que ela também sentia o mesmo vazio. Era um segredo partilhado entre mulheres da nossa idade: a sensação de sermos móveis antigos numa casa moderna.

O telefone tocou, interrompendo o momento. Era a Marta.

— Olá mãe! Está tudo bem? Desculpa não ter ido este fim de semana… — a voz dela soava apressada, distante.

— Está tudo bem, filha — menti automaticamente. — Não te preocupes.

— Olha, tenho de desligar, mas depois ligo outra vez! Beijinhos!

O silêncio voltou assim que desliguei.

— Vês? — disse eu, olhando para Teresa. — É sempre assim. Não há tempo para ouvir as respostas.

Ela abanou a cabeça.

— E tu? O que fazes para não enlouquecer?

Fiquei a olhar para a janela, onde a chuva começava a bater devagarinho no vidro.

— Escrevo cartas ao António — confessei baixinho. — Cartas que nunca envio, claro. Conto-lhe tudo: as saudades, as zangas com os miúdos, até as pequenas alegrias… como quando encontro uma rosa nova no jardim ou quando o pão sai perfeito do forno.

Teresa sorriu tristemente.

— E achas que ele te ouve?

Encolhi os ombros.

— Quero acreditar que sim. Às vezes sinto o cheiro do aftershave dele no corredor… talvez seja só imaginação, mas ajuda-me a continuar.

Ela ficou pensativa por uns instantes.

— Sabes… eu também falo com o Manuel à noite. Pergunto-lhe porque é que me deixou sozinha com esta casa cheia de memórias e tão pouca vida.

Rimo-nos ambas, mas era um riso cheio de lágrimas por dentro.

De repente ouviu-se um estrondo vindo do andar de cima. O coração disparou-me no peito.

— Deve ter sido o vento — disse Teresa rapidamente, mas vi o medo nos olhos dela. Ambas sabíamos que já não tínhamos forças para subir escadas a correr se fosse preciso.

— Lembras-te quando subíamos estas escadas aos saltos atrás dos miúdos? — perguntei eu, tentando aliviar o ambiente.

Ela assentiu.

— Agora até o barulho do vento nos assusta…

Ficámos caladas mais uma vez. A chuva intensificava-se lá fora; cá dentro, cada uma lutava com os seus fantasmas.

— Maria… alguma vez te arrependeste de alguma coisa? — perguntou Teresa de repente.

A pergunta apanhou-me desprevenida. Pensei em todas as escolhas feitas ao longo dos anos: os sacrifícios pelo António, as noites sem dormir à espera dos filhos adolescentes, as discussões nunca resolvidas com a Marta sobre o curso dela…

— Arrependo-me de não ter dito mais vezes o que sentia — admiti finalmente. — De ter engolido tantas palavras para evitar discussões ou magoar alguém. Agora vejo que guardar tudo só me magoou a mim.

Teresa suspirou.

— Eu também… sempre quis ser mais firme com o João quando ele começou a beber demais. Mas calei-me por medo de perder o pouco que ainda tinha dele.

Olhei para ela com compaixão. Quantas mulheres como nós terão passado a vida inteira a calar dores para manter a paz?

O relógio continuava a marcar o tempo implacável. Senti uma urgência súbita de fazer algo diferente antes que fosse tarde demais.

Levantei-me devagar e fui buscar um envelope e papel à gaveta da sala. Voltei para a cozinha e empurrei-os na direção de Teresa.

— Escreve-lhe uma carta também — sugeri. — Mesmo que nunca a envies… às vezes basta pôr cá fora aquilo que pesa cá dentro.

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos e acenou afirmativamente.

Ficámos ali sentadas durante horas, cada uma mergulhada nas suas palavras escritas à mão trémula. Quando finalmente levantámos os olhos do papel, senti uma leveza nova no peito.

A noite caiu devagarinho sobre nós e acendemos as luzes amarelas da cozinha antiga. Lá fora, a tempestade acalmava-se; cá dentro, sentia-se uma paz tímida mas real.

Antes de sair, Teresa abraçou-me com força inesperada para duas mulheres já frágeis nos ossos mas ainda tão vivas por dentro.

— Obrigada por me ouvires sem pressa — sussurrou ela ao meu ouvido.

Sorri-lhe e fechei a porta devagarinho depois dela sair. Fiquei sozinha na cozinha iluminada apenas pelo candeeiro antigo e pelo calor das memórias partilhadas naquela tarde chuvosa.

Sentei-me novamente à mesa e olhei para as cartas espalhadas à minha frente: umas para o António, outras para mim mesma. Percebi então que envelhecer é aprender a viver com silêncios e ausências… mas também é encontrar coragem para dizer finalmente aquilo que ficou por dizer durante uma vida inteira.

Será que algum dia aprendemos mesmo a ser ouvidos? Ou será que só encontramos a nossa voz quando já ninguém está à espera de ouvir?