Entre Sombras e Luzes: O Casamento da Inês e o Favoritismo do Meu Padrasto

— Não é justo, António! — gritei-lhe na cozinha, enquanto o cheiro do bacalhau com natas se misturava com a tensão no ar. — Sempre foi assim, desde que te juntaste à mãe. A Inês tem tudo de ti, e eu fico sempre para segundo plano.

Ele pousou a travessa com força na bancada, os olhos cansados mas firmes. — Não digas disparates, Mariana. Sabes bem que gosto das duas por igual.

Mas eu sabia que não era verdade. Ou pelo menos, sentia que não era. Desde pequena, depois do divórcio dos meus pais, António entrou nas nossas vidas como um raio de sol num inverno rigoroso. A minha mãe, Teresa, parecia finalmente feliz. E eu? Eu tentei adaptar-me. Mas a Inês, dois anos mais nova, era o centro do universo dele. Ele ensinou-a a andar de bicicleta no parque Eduardo VII, levou-a ao estádio da Luz para ver o Benfica, e até lhe comprou um piano quando ela disse que queria aprender música. Eu? Fui ficando à margem, sempre a tentar não incomodar.

Agora, no dia do casamento da Inês, tudo parecia repetir-se. António estava radiante, a correr de um lado para o outro com o telemóvel na mão, a resolver tudo para a filha preferida. Eu ajudava a mãe com os arranjos das mesas, mas ninguém me perguntava como me sentia. O vestido azul que comprei parecia-me ridículo ao lado do branco rendado da Inês e do fato novo do António.

A manhã passou num turbilhão de vozes e risos. Quando finalmente tive um momento sozinha no quarto de infância, sentei-me na cama e olhei para as fotos antigas na parede. Eu e Inês no jardim zoológico; eu, sozinha, no meu aniversário de dez anos; António e Inês a sorrir na praia da Nazaré. Senti uma pontada no peito.

A porta abriu-se devagar. Era a minha mãe.

— Mariana… — sentou-se ao meu lado e pousou a mão na minha perna. — Estás bem?

— Não — respondi sem rodeios. — Sinto-me invisível. O António só tem olhos para a Inês. Sempre foi assim.

Ela suspirou fundo. — O António ama-te à maneira dele. Sabes que ele não teve filhos antes de vocês… Ele esforçou-se tanto para ser pai.

— Mas só conseguiu ser pai dela — atirei, amarga.

O silêncio ficou pesado entre nós. Lá fora ouviam-se gargalhadas e música.

— Mariana — disse ela por fim — às vezes o amor não é igual, mas não quer dizer que seja menos verdadeiro.

Não respondi. Não queria chorar ali.

O tempo passou depressa demais até à cerimónia. No salão da quinta em Sintra, as mesas estavam decoradas com flores brancas e azuis. Os convidados riam-se alto, brindavam ao amor jovem da Inês e do João. António estava ao lado dela no altar improvisado, com um sorriso orgulhoso que me fez sentir ainda mais pequena.

Quando chegou a hora dos discursos, levantei-me nervosa. O microfone tremia nas minhas mãos suadas.

— Boa noite… Eu sou a Mariana, irmã da noiva — comecei, tentando sorrir. — Queria dizer umas palavras à Inês… e à nossa família.

Olhei para António, que me fitava atento pela primeira vez naquele dia.

— Crescer convosco foi uma aventura cheia de altos e baixos. Nem sempre foi fácil sentir-me parte… mas hoje percebo que cada um ama à sua maneira. E se às vezes me senti menos vista… talvez tenha sido porque procurei o amor nos gestos errados.

A voz falhou-me e as lágrimas caíram sem pedir licença.

— Inês… és a minha irmã e minha melhor amiga. António… obrigada por teres tentado ser pai quando podias simplesmente ter sido padrasto.

O salão ficou em silêncio por um instante antes dos aplausos tímidos começarem. Sentei-me rapidamente, envergonhada.

Mais tarde, já com a festa animada e os copos meio vazios de vinho verde espalhados pelas mesas, António aproximou-se de mim no jardim iluminado por lanternas.

— Mariana — começou ele, hesitante — nunca soube bem como chegar até ti. Sempre foste tão independente… Achei que não precisavas de mim como a Inês precisava.

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Talvez eu precisasse mais do que pensavas — sussurrei.

Ele sorriu triste e abraçou-me com força inesperada.

— Ainda vamos a tempo de sermos família?

Senti o nó na garganta desfazer-se um pouco.

— Acho que sim… se ambos quisermos tentar.

Naquela noite dancei com a minha irmã até os pés doerem e ri com António como nunca antes. O passado não desapareceu, mas ficou mais leve.

Agora pergunto-me: quantas famílias vivem presas em silêncios e mal-entendidos? Será que temos coragem de falar sobre as nossas dores antes que seja tarde demais?