Entre Sombras e Luz: O Meu Caminho em Lisboa
— Não me digas que vais desistir agora, mãe! — gritei, sentindo a garganta arder, enquanto a chuva batia forte nas janelas do nosso pequeno apartamento em Benfica. O cheiro do café queimado misturava-se com o odor metálico dos medicamentos espalhados pela mesa da cozinha. A minha mãe olhou-me com olhos cansados, tão fundos que pareciam esconder anos de segredos e dores. — Não é uma questão de desistir, Mariana. É uma questão de aceitar.
Aceitar. Como se fosse fácil aceitar que, aos vinte e dois anos, o meu mundo se desmoronava. O diagnóstico chegou como um trovão numa tarde de verão: linfoma. O médico falou devagar, como se as palavras pudessem magoar menos assim. Mas magoaram. Magoaram tanto que me lembro de ter ficado sem ar, como se alguém me tivesse mergulhado num tanque gelado.
O meu pai não estava lá nesse dia. Aliás, o meu pai já não estava presente há muito tempo, mesmo antes de sair de casa para viver com a tal mulher do escritório. A minha mãe nunca me perdoou por ter sido eu a descobrir as mensagens no telemóvel dele. — Se não tivesses mexido nas coisas do teu pai… — dizia ela, sempre que discutíamos. Como se eu tivesse aberto a caixa de Pandora e libertado todos os males do mundo.
A doença tornou-se o centro da nossa vida. As conversas giravam sempre à volta dos exames, das consultas no Hospital de Santa Maria, dos efeitos secundários da quimioterapia. Os meus amigos começaram a afastar-se, talvez por medo, talvez por não saberem o que dizer. Só a Joana ficou. — Vais vencer isto, miúda! — dizia ela, apertando-me a mão com força.
Mas havia dias em que eu própria não acreditava nisso. Dias em que me olhava ao espelho e via uma estranha: careca, pálida, com olheiras profundas. Lembro-me de uma noite em particular, quando ouvi os meus pais discutirem ao telefone. — Não podes simplesmente desaparecer agora! — gritava a minha mãe. Do outro lado, o silêncio dele era ensurdecedor.
A raiva crescia dentro de mim como uma erva daninha. Comecei a afastar-me da minha mãe, culpando-a por tudo: pelo divórcio, pela doença, pela solidão. Ela tentava aproximar-se, mas eu erguia muros cada vez mais altos. — Preciso de respirar! — atirei-lhe um dia, antes de sair porta fora e caminhar sem rumo pelas ruas molhadas de Lisboa.
Foi numa dessas caminhadas que conheci o Tiago. Trabalhava numa pequena livraria no Bairro Alto e tinha um sorriso tímido, quase envergonhado. — Procuras alguma coisa especial? — perguntou-me, enquanto eu fingia interesse nos livros antigos. Acabámos por conversar durante horas sobre tudo e nada: música portuguesa, filmes antigos, sonhos adiados.
O Tiago tornou-se o meu refúgio. Com ele, sentia-me normal outra vez. Ele nunca me olhou com pena; tratava-me como se eu fosse apenas a Mariana, não a Mariana doente. Começámos a encontrar-nos todos os fins-de-semana, partilhando segredos e silêncios confortáveis.
Entretanto, em casa, as coisas pioravam. A minha mãe perdeu o emprego e começou a beber às escondidas. Uma noite encontrei-a caída no chão da cozinha, rodeada de garrafas vazias. — Não me deixes sozinha — sussurrou ela, agarrando-se à minha mão com uma força desesperada.
Senti-me dividida entre o desejo de fugir e a obrigação de ficar. O Tiago dizia-me para pensar em mim própria pela primeira vez na vida. — Não podes salvar toda a gente, Mariana — murmurava ele, acariciando-me o rosto.
Mas como podia eu abandonar a minha mãe? Ela era tudo o que me restava da família que um dia fomos.
Os meses passaram entre idas ao hospital e noites em claro. O meu corpo enfraquecia, mas a minha vontade de viver crescia em proporção inversa. Comecei a escrever um diário onde despejava todas as minhas angústias e esperanças. Foi nesse diário que escrevi pela primeira vez: “Quero viver para além da doença”.
Um dia recebi uma mensagem do meu pai: “Podemos falar?” O coração bateu descompassado. Encontrámo-nos num café perto do Marquês de Pombal. Ele parecia mais velho, mais cansado. — Desculpa — disse ele, com lágrimas nos olhos. — Fugi porque não sabia lidar com tudo isto.
Quis gritar-lhe todas as mágoas que guardava há anos, mas limitei-me a perguntar: — E agora? Vais ficar?
Ele hesitou antes de responder: — Vou tentar ser melhor pai.
Não confiei logo nele. A confiança é como porcelana: depois de partida, nunca volta a ser igual.
A minha mãe entrou em depressão profunda e foi internada durante algumas semanas. Fiquei sozinha em casa pela primeira vez na vida. O silêncio era pesado, quase insuportável. O Tiago passou a dormir lá muitas noites para me fazer companhia.
Foi nessa altura que recebi os resultados dos exames: remissão completa. Não consegui acreditar; chorei durante horas no colo do Tiago.
A doença ensinou-me muito sobre mim própria e sobre os outros. Aprendi que nem sempre os laços de sangue são suficientes para manter uma família unida; às vezes são as pessoas que escolhemos que nos salvam.
Hoje olho para trás e vejo uma jovem marcada por cicatrizes invisíveis mas também por uma força inesperada. A minha mãe continua frágil mas estável; o meu pai tenta reconstruir uma relação comigo; o Tiago tornou-se parte da família que escolhi.
Pergunto-me muitas vezes: será que vencer é apenas sobreviver ou é aprender a viver apesar das perdas? E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre si próprios e quem amam?