Entre Sombras e Esperança: A História de Marta, Rui e Olívia

— Marta, não podes continuar assim! — A voz da minha mãe ecoava pela cozinha, misturada com o cheiro a café acabado de fazer e o som abafado da chuva a bater nos vidros. — Tens de seguir em frente, filha. Já passaram dois anos.

Dois anos. Como se o tempo pudesse apagar a dor de perder o Pedro, o homem com quem planeei envelhecer. Olhei para as mãos trémulas, tentando esconder as lágrimas que ameaçavam cair. A minha filha, Olívia, brincava no tapete da sala, alheia ao peso que pairava sobre nós.

— Mãe, eu tento… — sussurrei, mas a voz falhou-me. — Mas não é assim tão simples.

Ela suspirou, aproximando-se para me abraçar. O seu cheiro a lavanda era reconfortante, mas não suficiente para preencher o vazio que sentia desde aquele acidente maldito na estrada de Sintra. Pedro partiu numa manhã chuvosa como esta, e desde então tudo ficou suspenso no tempo.

A vida em Lisboa continuava, indiferente à minha dor. Os vizinhos cumprimentavam-me com sorrisos forçados, os colegas do hospital evitavam falar do assunto. Só Olívia parecia não perceber a ausência do pai — ou talvez percebesse e apenas não soubesse como expressar.

Foi numa dessas manhãs cinzentas que conheci o Rui. Tinha acabado de me mudar para o prédio ao lado, com um filho pequeno e um olhar cansado. Cruzámo-nos no elevador, ambos carregados de sacos e silêncios. Ele sorriu-me timidamente.

— Bom dia… Marta, certo? — perguntou, hesitante.

Assenti, surpresa por ele saber o meu nome.

— O meu filho chama-se Tomás — disse, apontando para o rapazinho de olhos vivos ao seu lado. — Viemos de Braga há pouco tempo.

A conversa foi breve, mas ficou-me na memória. Rui tinha uma tristeza nos olhos que reconheci de imediato — a dor de quem perdeu algo importante. Nos dias seguintes, cruzámo-nos mais vezes: no supermercado, no parque infantil onde levava Olívia. Aos poucos, começámos a conversar sobre banalidades: o tempo, os miúdos, as saudades do Norte dele e as minhas do passado.

Certa tarde, enquanto Olívia e Tomás brincavam juntos pela primeira vez, Rui sentou-se ao meu lado no banco do jardim.

— Sabe… — começou ele, olhando para as mãos — às vezes penso que nunca mais vou conseguir ser feliz. A minha mulher deixou-nos há quase três anos. Não morreu… simplesmente foi-se embora.

Olhei para ele em silêncio. A dor dele era diferente da minha, mas igualmente profunda.

— Eu perdi o Pedro num acidente — confessei, sentindo um nó na garganta. — Desde então… tudo mudou.

Ficámos ali sentados, partilhando silêncios e mágoas. Pela primeira vez em muito tempo senti que alguém compreendia verdadeiramente o que eu sentia.

Os meses passaram e a amizade com Rui tornou-se parte da minha rotina. Jantávamos juntos às sextas-feiras, as crianças tornaram-se inseparáveis. A minha mãe começou a notar a mudança.

— Estás diferente — disse ela um dia, enquanto dobrávamos roupa na varanda. — Até sorris mais.

Encolhi os ombros, tentando esconder o embaraço.

— O Rui é só um amigo…

Ela sorriu com aquele ar sábio de quem já viu muito na vida.

— Às vezes é dos amigos que nasce o amor.

Fingi não ouvir, mas as palavras ficaram-me na cabeça durante dias. Comecei a reparar nos pequenos gestos de Rui: a forma como me olhava quando pensava que eu não via, como se preocupava com Olívia quando ela estava doente, como ria das minhas piadas sem graça.

Numa noite de verão, depois de um jantar animado em casa dele, ficámos os dois na varanda enquanto as crianças dormiam. O cheiro a sardinhas assadas ainda pairava no ar.

— Marta… — disse ele baixinho — tenho medo de me voltar a apaixonar. Tenho medo de magoar o Tomás… ou a ti.

O coração bateu-me mais depressa. Senti uma vontade súbita de fugir dali, mas fiquei.

— Eu também tenho medo — admiti. — Mas talvez seja altura de arriscar outra vez.

Ele pegou na minha mão e ficámos ali em silêncio, ouvindo apenas os sons distantes da cidade adormecida.

Os meses seguintes foram um turbilhão de emoções. A relação com Rui trouxe-me alegria e esperança, mas também dúvidas e inseguranças. Olívia começou a perguntar pelo pai com mais frequência; Tomás tinha crises de ciúmes quando via Rui comigo e não com ele. A minha mãe apoiava-me mas avisava:

— Não te esqueças de ti própria nem da Olívia nesta história toda.

Houve discussões acesas entre mim e Rui sobre como gerir as crianças, sobre os limites entre as nossas famílias. Uma noite, depois de uma dessas discussões, fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais forças.

— Será que estou a fazer tudo errado? — perguntei ao espelho embaciado.

No trabalho também não era fácil. Os colegas cochichavam sobre o “novo namorado” da Marta viúva; alguns olhavam-me com pena, outros com inveja disfarçada. Senti-me julgada por todos os lados.

Um dia, Olívia chegou da escola em lágrimas.

— Mãe… disseram-me que tu já não gostas do papá porque agora tens o Rui!

O mundo desabou-me aos pés naquele momento. Abracei-a com força.

— Isso não é verdade, meu amor. O papá vai estar sempre no nosso coração. Mas também temos direito a ser felizes outra vez…

Ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e tristes.

— E se eu não quiser gostar do Rui?

Senti uma dor aguda no peito.

— Não tens de gostar dele como gostavas do papá. Mas gostava que lhe desses uma oportunidade…

Os dias seguintes foram tensos. Olívia evitava Rui sempre que podia; Tomás fazia birras constantes; eu sentia-me a falhar como mãe e como mulher. Rui sugeriu darmos um tempo.

— Talvez estejamos a forçar demasiado as coisas — disse ele numa noite fria de novembro.

Chorei sozinha nessa noite. Senti-me perdida entre dois mundos: o passado que não conseguia largar e o futuro que parecia cada vez mais distante.

Foi Olívia quem me surpreendeu semanas depois. Uma manhã entrou no meu quarto com um desenho nas mãos: éramos nós quatro de mãos dadas num jardim cheio de flores coloridas.

— Fiz isto para ti — disse ela timidamente. — Podemos tentar outra vez?

Abracei-a com força, as lágrimas a correrem-me pelo rosto.

Voltei a procurar Rui e juntos decidimos recomeçar devagarinho, respeitando os tempos das crianças e os nossos próprios limites. Não foi fácil; houve recaídas, dúvidas e medos. Mas aos poucos fomos construindo uma nova família à nossa medida — imperfeita mas verdadeira.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste caminho cheio de sombras e esperança. Ainda sinto saudades do Pedro; ainda tenho medo do futuro. Mas aprendi que é possível amar outra vez sem esquecer quem fomos nem quem perdemos.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia conseguimos mesmo sarar todas as feridas? Ou aprendemos apenas a viver com elas? E vocês… já tiveram de escolher entre o passado e o futuro?