Entre Silêncios e Segredos: O Peso de Uma Nova Vida

— Mãe, não consigo. Não consigo dizer-lhe. — A voz da Inês tremia, os olhos vermelhos de tanto chorar. Era madrugada, a casa mergulhada num silêncio pesado, só interrompido pelo som abafado dos soluços dela no sofá da sala.

Eu estava sentada ao lado dela, com a manta de lã sobre os joelhos, sentindo o frio da noite e o calor da preocupação a queimar-me o peito. O relógio marcava quase três da manhã. O meu marido, António, dormia no quarto ao fundo do corredor, alheio à tempestade que se abatia sobre nós.

— Filha, tens de lhe contar. O Miguel tem direito a saber — disse-lhe em voz baixa, tentando não parecer tão assustada quanto me sentia.

Ela abanou a cabeça com força, como se quisesse sacudir o medo. — Não percebes, mãe? Ele vai odiar-me. Vai dizer que eu estraguei tudo outra vez. — Tapou o rosto com as mãos e começou a chorar mais alto.

A minha filha tinha regressado a casa há duas semanas, com a mala na mão e o nosso neto Tomás pela mão. Disse apenas: “Preciso de ficar aqui uns tempos.” Não explicou nada ao certo. Só depois, entre lágrimas e silêncios, percebi que estava grávida outra vez e que o casamento já vinha aos trambolhões há meses.

O Miguel sempre foi um homem difícil. Trabalhava horas a fio na oficina do pai dele, chegava tarde, cansado e mal-humorado. A Inês tentava sempre agradar-lhe: punha o jantar na mesa, arrumava a casa, cuidava do Tomás. Mas ele parecia nunca reparar. E agora, com mais um filho a caminho…

— Lembras-te de quando eu era pequena e tu gritaste com o pai porque ele não me deixou ir à excursão? — perguntou-me de repente.

Sorri, apesar da situação. — Lembro. E voltaria a fazê-lo.

— Eu queria ser assim como tu. Forte. Mas não sou — murmurou ela.

Abracei-a com força. Senti o cheiro do cabelo dela, misturado com lágrimas e champô barato. — És mais forte do que pensas, filha.

Mas por dentro eu própria duvidava. Será que estava a ser justa? Será que devia pressioná-la a contar ao Miguel? Ou devia protegê-la daquele homem que tantas vezes vi tratar a minha filha como se ela fosse invisível?

No dia seguinte, o António percebeu logo que algo não estava bem. Encontrou-me na cozinha, de olhar perdido na chávena de café.

— Que se passa com a Inês? — perguntou ele.

— Está cansada — menti.

Ele olhou-me de lado. — Não me mintas, Maria do Carmo. Eu conheço-te.

Suspirei e baixei a voz. — Está grávida outra vez.

O António ficou calado uns segundos. Depois abanou a cabeça devagarinho.

— E o Miguel sabe?

— Não.

Ele ficou pensativo. — Não podemos esconder isto dele para sempre.

— Eu sei — respondi. — Mas também não quero empurrá-la para os braços de um homem que não a respeita.

O António ficou calado outra vez. Depois saiu para o quintal sem dizer mais nada.

Os dias foram passando devagar. O Tomás perguntava pelo pai todos os dias. A Inês fechava-se no quarto durante horas. Eu tentava manter a casa em ordem, mas sentia-me cada vez mais perdida.

Uma tarde, ouvi vozes na sala. Era o António e a Inês.

— Filha, tens de decidir o que queres para ti e para os teus filhos — dizia ele.

— Eu não sei! — gritou ela. — Não sei se quero voltar! Não sei se quero este bebé! Não sei nada!

O António ficou calado. Depois disse: — O teu pai nunca foi perfeito. Mas sempre te amou. O Miguel… só tu sabes se ainda há amor aí.

A Inês chorou em silêncio durante muito tempo depois disso.

Nessa noite, sentei-me ao lado dela na cama.

— Filha, eu amo-te mais do que tudo neste mundo. Mas não posso decidir por ti. Só te peço uma coisa: não deixes que o medo decida por ti.

Ela olhou para mim com os olhos grandes e assustados de quando era criança.

— E se ele me mandar embora? E se ele disser que não quer saber deste bebé?

Abracei-a outra vez. — Então nós estamos aqui para ti. Sempre.

No dia seguinte, o Miguel apareceu à porta sem avisar. O Tomás correu para ele aos gritos: “Pai! Pai!” O Miguel olhou para mim e para o António com desconfiança.

— Posso falar com a Inês? — perguntou seco.

Ela desceu as escadas devagarinho, pálida como um fantasma.

Fecharam-se os dois na sala. Eu fiquei à porta, a ouvir as vozes abafadas:

— Porque é que vieste para aqui? — perguntou ele.

— Precisava de pensar — respondeu ela.

— Pensar em quê? Em fugir de mim?

— Não… em mim… em nós…

Houve um silêncio longo demais.

— Estás diferente — disse ele por fim.

— Estou grávida — murmurou ela tão baixo que quase não ouvi.

O silêncio foi cortado por um som seco: uma cadeira arrastada no chão.

— Outra vez? Agora? Achas que isto é altura?

Ela começou a chorar baixinho.

— Eu não planeei…

— Pois claro! Nunca planeias nada! Achas que isto é fácil para mim?

Eu queria entrar ali e defendê-la, mas fiquei paralisada à porta.

— Se não queres este bebé… — começou ele.

— Quero! Quero sim! Só tenho medo…

O Miguel ficou calado durante muito tempo. Depois ouvi-o suspirar fundo.

— Eu também tenho medo — disse ele por fim, num tom que nunca lhe tinha ouvido antes.

Ficaram ali sentados em silêncio durante muito tempo. Quando saíram da sala, os olhos da Inês estavam inchados mas havia uma luz diferente neles: uma decisão tomada, talvez uma esperança ténue.

O Miguel saiu sem dizer adeus. A Inês subiu as escadas devagarinho e fechou-se no quarto com o Tomás.

Nessa noite sentei-me sozinha na cozinha, com uma chávena de chá nas mãos trémulas. O António entrou e sentou-se ao meu lado sem dizer nada durante muito tempo.

Por fim perguntei-lhe:

— Fizemos bem em incentivá-la a contar?

Ele encolheu os ombros. — Fizemos o melhor que sabíamos fazer como pais.

Agora escrevo estas palavras ainda sem saber como vai acabar esta história. Só sei que o silêncio pesa mais do que qualquer verdade dolorosa. E pergunto-me: será sempre melhor enfrentar os nossos medos do que escondê-los? O amor de mãe chega para proteger os filhos das dores do mundo?