Entre Silêncios e Lágrimas: O Peso da Ausência

— Sabes, Maria, eu sei que tinhas razão. — A voz do António tremeu, quase se afogando no silêncio da cozinha. — Desculpa por não te ter defendido. Tive medo de me opor à minha mãe.

Oiço estas palavras e sinto uma dor aguda, como se alguém me apertasse o peito com as duas mãos. Olho para ele, para o homem com quem partilhei vinte anos de vida, e vejo nos seus olhos um cansaço antigo, mas também um arrependimento sincero. O relógio na parede marca quase meia-noite. Lá fora, a chuva bate nos vidros, como se quisesse lavar as mágoas que se acumularam nesta casa.

Lembro-me do primeiro dia em que conheci a Dona Rosa, minha sogra. Era um domingo de verão, e António levou-me a casa dos pais para almoçar. Ela olhou-me de cima a baixo, avaliando cada detalhe: o vestido simples, o cabelo apanhado à pressa, as mãos nervosas. — És muito magrinha para quem quer casar com o meu filho — disse, sem rodeios. Todos riram, menos eu. Senti-me pequena, deslocada.

Com o tempo, percebi que aquele era apenas o início. Dona Rosa tinha sempre uma opinião sobre tudo: como eu cozinhava, como limpava a casa, como educava os meus filhos. — No meu tempo fazia-se assim! — repetia ela, batendo com força na mesa. António ficava calado. Às vezes olhava para mim com um pedido mudo de paciência. Outras vezes nem isso.

Os anos passaram e as críticas tornaram-se mais afiadas. — Não sabes cuidar do teu marido! — gritava ela quando António chegava tarde do trabalho e eu não tinha o jantar pronto. — Os teus filhos andam sempre desarrumados! — apontava para as roupas dos miúdos, ignorando o facto de eu trabalhar fora e ainda cuidar da casa sozinha.

Houve noites em que chorei baixinho na casa de banho, para ninguém ouvir. Outras vezes, discutia com António até à exaustão.

— Porque é que nunca me defendes? — perguntava-lhe, desesperada.
— É a minha mãe… Não quero magoá-la — respondia ele, desviando o olhar.

A verdade é que Dona Rosa era uma força da natureza. Viúva desde cedo, criou três filhos sozinha e nunca permitiu que ninguém lhe dissesse o que fazer. António era o mais novo e o mais protegido. Talvez por isso nunca conseguiu enfrentar a mãe.

Quando ela adoeceu, há três anos, foi cá para casa que veio viver. Os médicos disseram que não lhe restava muito tempo. Eu cuidei dela como pude: dava-lhe banho, preparava-lhe as refeições especiais, sentava-me ao lado dela nas noites em que não conseguia dormir.

Mesmo assim, as críticas continuaram.

— Não sabes dar banho a uma pessoa doente! — reclamava ela, mesmo quando eu fazia tudo com cuidado.
— O António está magro porque tu não sabes cozinhar!

Às vezes apetecia-me gritar. Outras vezes só queria desaparecer.

Os meus filhos começaram a evitar a avó. O Pedro, o mais velho, dizia:
— Mãe, porque é que a avó está sempre zangada contigo?
Eu não sabia responder.

Na noite em que Dona Rosa morreu, estava sentada ao lado dela. Segurei-lhe a mão até ao fim. Quando tudo terminou, senti um alívio estranho misturado com culpa. Chorei muito nesse dia — não só por ela, mas por tudo o que ficou por dizer entre nós.

Depois do funeral, a casa ficou diferente. O silêncio era pesado, quase insuportável. António fechou-se ainda mais em si mesmo. Durante meses mal falámos sobre o que tinha acontecido.

Hoje, dois anos depois da morte dela, finalmente ouvi dele aquilo que sempre precisei:

— Sei que devia ter-te defendido mais vezes… Mas tinha medo dela. Sempre tive.

Olho para ele e vejo um homem quebrado pelo remorso.

— António… — começo eu, mas as palavras falham-me.

Ele segura-me a mão pela primeira vez em muito tempo.

— Perdoas-me?

Queria dizer-lhe que sim, mas não consigo esquecer tudo o que vivi sozinha durante tantos anos. O perdão não é fácil quando as feridas ainda sangram.

— Não sei… Preciso de tempo.

Ele baixa a cabeça e ficamos ali sentados em silêncio.

Os nossos filhos entram na cozinha e sentam-se connosco. O Pedro olha para mim com preocupação.

— Está tudo bem?

Sorrio-lhe com esforço.

— Vai ficar… Só precisamos de conversar um pouco mais.

A verdade é que nunca imaginei que a ausência de Dona Rosa fosse tão pesada quanto a sua presença. Agora percebo que os fantasmas do passado continuam a viver connosco — nas palavras não ditas, nos gestos contidos, nos silêncios partilhados.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas ao medo de desagradar aos outros? Quantas mulheres sofrem caladas porque os maridos não conseguem cortar o cordão umbilical com as mães? Será possível reconstruir um casamento depois de tantos anos de mágoa?

E vocês? Já sentiram este peso do silêncio nas vossas casas? Como se perdoa quando se esteve tanto tempo sozinho?