Entre Silêncios e Gritos: O Peso dos Julgamentos na Família
— Não percebes mesmo, pois não? — A voz da Dona Amélia ecoava pela cozinha, cortando o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava ali, de costas para ela, a tentar controlar as mãos que tremiam enquanto lavava a loiça. — Não percebes que o Rui precisa de ti, precisa de uma família unida?
A minha vontade era responder, gritar talvez. Mas limitei-me a apertar ainda mais o pano entre os dedos. O Rui, meu marido, estava no quarto ao lado, fingindo não ouvir. Era sempre assim: eu e a mãe dele, frente a frente, como duas muralhas que não cedem.
Quando casei com o Rui, há seis anos, nunca pensei que a maior batalha seria com a própria família dele. Dona Amélia era uma mulher de presença forte, dessas que entram numa sala e fazem questão de ser notadas. Eu, pelo contrário, sempre fui mais reservada, preferia observar antes de falar. Talvez por isso nunca nos entendemos.
Lembro-me do primeiro jantar em casa dos meus sogros. A mesa posta com rigor, os talheres alinhados como soldados. Dona Amélia serviu-me bacalhau à Brás e olhou-me nos olhos:
— Espero que gostes. Aqui em casa fazemos tudo com amor.
Sorri, mas senti o peso da frase. Era como se dissesse: “Aqui, quem manda sou eu”. O Rui tentava apaziguar as coisas, mas era evidente que estava dividido entre nós.
Com o tempo, os pequenos atritos tornaram-se rotina. Se eu queria passar o Natal com a minha família, Dona Amélia fazia questão de lembrar que “o Rui sempre passou o Natal aqui”. Se eu sugeria um passeio a dois ao domingo, ela aparecia com um bolo acabado de fazer e um convite para almoçarmos todos juntos.
— Não percebes mesmo… — repetiu ela naquele dia na cozinha.
Virei-me finalmente para encará-la. — Eu percebo mais do que pensa. Só não quero viver a vida toda a sentir-me uma intrusa nesta casa.
Os olhos dela brilharam por um segundo, talvez de raiva, talvez de tristeza. — Nunca foste intrusa. Foste tu que nunca quiseste entrar.
Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante semanas. Será que era verdade? Será que fui eu que nunca tentei realmente fazer parte daquela família?
O Rui começou a chegar mais tarde a casa. Dizia que era trabalho, mas eu sabia que era para evitar as discussões. A nossa relação foi-se desgastando, cada um fechado no seu silêncio.
Um dia, depois de uma discussão mais acesa, Rui saiu porta fora sem dizer para onde ia. Fiquei sozinha na sala, a olhar para as fotografias na estante: o nosso casamento, as férias no Algarve, um Natal em família onde todos sorriam para a câmara. Senti uma dor aguda no peito. O que estava eu a fazer à minha vida?
Na manhã seguinte, Dona Amélia apareceu lá em casa sem avisar. Trazia uma tarte de maçã nas mãos e um olhar cansado.
— Posso entrar?
Assenti em silêncio. Sentámo-nos à mesa da cozinha, cada uma com uma chávena de chá à frente.
— Sabes — começou ela — quando perdi o meu marido, achei que nunca mais ia conseguir gostar de ninguém como gostava dele. Mas depois nasceu o Rui e percebi que o amor pode ser diferente e ainda assim ser tudo.
Fiquei calada, sem saber o que dizer.
— Só queria que tu gostasses dele como eu gosto — continuou ela. — E talvez tenha sido dura contigo porque tinha medo de te perder também.
As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto sem eu conseguir controlar.
— Eu também tive medo — confessei. — Medo de não ser suficiente. Medo de não conseguir agradar.
Ficámos ali sentadas durante minutos eternos, cada uma a chorar as suas mágoas antigas.
Depois desse dia tentei mudar. Convidei Dona Amélia para almoçar connosco aos domingos, pedi-lhe receitas antigas da família e até lhe pedi ajuda quando engravidei do nosso primeiro filho.
Mas nem tudo se resolve num instante. O Rui continuava distante e as feridas demoravam a sarar.
Quando o nosso filho nasceu — o pequeno Tomás — pensei que tudo ia mudar. Mas as noites mal dormidas e o cansaço trouxeram novas discussões. Dona Amélia queria ajudar mas eu sentia-me invadida sempre que ela pegava no bebé sem pedir.
— Deixa-me ajudar-te — dizia ela.
— Eu consigo sozinha! — respondia eu, quase sempre demasiado alto.
O Rui acabou por sair de casa seis meses depois do nascimento do Tomás. Disse que precisava de espaço para pensar. Fiquei sozinha com um bebé nos braços e uma sogra preocupada à porta todos os dias.
Durante meses recusei-lhe a entrada. Só queria silêncio e paz para tentar perceber onde tinha falhado.
Foi só quando o Tomás ficou doente — uma bronquiolite grave que nos levou ao hospital durante dias — que percebi o quanto precisava dela. Dona Amélia esteve ao meu lado noite e dia, trazendo comida quente e palavras de conforto quando eu já não tinha forças para chorar.
No hospital, numa dessas noites intermináveis, sentei-me ao lado dela no corredor gelado.
— Desculpe por tudo — sussurrei.
Ela apertou-me a mão com força.
— O importante é estarmos aqui agora.
O Rui voltou para casa algum tempo depois. Tentámos recomeçar, mas já era tarde demais. O desgaste era demasiado grande e acabámos por nos separar.
Hoje olho para trás e vejo todos os momentos em que podia ter escolhido diferente: podia ter ouvido mais, falado menos; podia ter tentado compreender em vez de julgar; podia ter aberto o coração em vez de erguer muralhas.
Dona Amélia continua presente na vida do Tomás e na minha também. Tornou-se quase uma segunda mãe para mim depois da separação. Às vezes penso como teria sido tudo se tivéssemos conseguido encontrar este entendimento antes do fim.
Será que somos sempre capazes de perdoar a tempo? Ou será que só aprendemos quando já não há volta atrás? Gostava de saber se alguém já sentiu este peso dos julgamentos mal feitos…