Entre Silêncios e Gritos: O Dia em Que Perdi Minha Filha

— Mãe, chega! Eu não aguento mais as tuas paranoias! — gritou a Mariana, com os olhos marejados e a voz a tremer entre raiva e tristeza.

Fiquei ali, parada no corredor, com o coração a bater tão forte que parecia querer saltar do peito. A minha neta, a pequena Leonor, olhava para mim com aqueles olhos grandes e inocentes, sem perceber o que se passava. Mariana pegou-lhe na mão e puxou-a para junto de si, como se eu fosse um perigo. Senti-me esmagada por dentro.

— Mariana, por favor, não faças isto… — tentei dizer, mas a voz saiu-me num sussurro rouco.

Ela virou-me as costas. Ouvi a porta a bater com força. O eco daquele estrondo ficou a ressoar-me nos ouvidos durante minutos intermináveis.

Fiquei sozinha na casa que já foi cheia de risos e conversas. Agora só restava o silêncio. Sentei-me no sofá da sala, abracei uma almofada e chorei como há muito não chorava. As lágrimas corriam-me pelo rosto sem pedir licença. Senti-me velha, inútil, perdida.

Não consigo deixar de pensar: onde foi que errei? Sempre tentei ser uma boa mãe. Dei tudo o que tinha à Mariana. Trabalhei noites inteiras como enfermeira no Hospital de Santa Maria para lhe pagar os estudos. Fui mãe e pai quando o António nos deixou. E agora ela acha que estou louca.

Tudo começou há uns meses. Notei que a Leonor chegava cá a casa sempre cansada, mais calada do que o normal. Uma vez tinha um arranhão no braço. Perguntei à Mariana o que se passava, mas ela respondeu-me com evasivas.

— Mãe, são coisas de crianças. Caiu no recreio — disse ela, sem me olhar nos olhos.

Mas eu conheço a minha neta. E conheço a minha filha. Comecei a insistir. Talvez insisti demais. Liguei-lhe várias vezes por semana, fiz perguntas atrás de perguntas. Até fui falar com a professora da Leonor na escola. Mariana soube e ficou furiosa.

— Não tens o direito de te meter assim na nossa vida! — atirou-me ela numa dessas discussões.

— Sou tua mãe! Quero proteger-vos! — respondi-lhe, sentindo-me cada vez mais impotente.

A verdade é que sempre tive medo de perder a Mariana. Desde pequena que era frágil, muito sensível. Quando o pai morreu num acidente de carro, ela fechou-se ainda mais no seu mundo. Eu tentei tudo para a ajudar: psicólogos, terapia familiar… Mas nunca consegui chegar verdadeiramente até ela.

Agora sinto que estou a perder também a Leonor. E isso dói mais do que qualquer coisa que já vivi.

Esta última discussão foi o culminar de meses de tensão. Mariana acusa-me de ser controladora, de inventar problemas onde não existem. Diz que preciso de ajuda, que estou obcecada com a ideia de que algo de mal vai acontecer à Leonor.

Será verdade? Estarei mesmo a perder o juízo? Ou será apenas o medo de ver repetir-se o passado?

Lembro-me do dia em que a Mariana caiu do escorrega e partiu o braço. Eu estava no hospital, numa noite de turno duplo. Quando me ligaram da escola, senti-me a pior mãe do mundo por não estar lá para ela. Talvez desde esse dia tenha tentado compensar essa ausência com excesso de zelo.

A minha irmã Teresa diz-me para dar tempo à Mariana.

— Ela precisa de espaço, mana. Não podes sufocá-la — aconselha-me ao telefone.

Mas como posso dar espaço quando sinto que estou a ser afastada da vida da minha neta? Como posso ficar parada quando tudo em mim grita para proteger aquela menina?

Os dias passam devagar. Tento ocupar-me com pequenas tarefas: arrumar gavetas, cuidar das plantas na varanda, ver novelas na televisão. Mas tudo me lembra a Leonor: os desenhos que deixou colados no frigorífico, os brinquedos esquecidos no quarto de hóspedes.

Tento escrever uma carta à Mariana. Apago e reescrevo mil vezes:

“Querida filha,
Sei que tenho sido difícil. Sei que às vezes exagero nas preocupações. Mas tudo o que faço é porque vos amo…”

Nunca chego ao fim da carta. As palavras parecem sempre erradas ou insuficientes.

Uma noite sonho com o António. Ele sorri-me do outro lado da mesa da cozinha e diz:

— Tens de confiar nela, Rosa. A Mariana já não é uma menina.

Acordo com lágrimas nos olhos e uma saudade imensa do tempo em que éramos uma família inteira.

No domingo seguinte decido ir à missa da paróquia onde a Mariana costumava ir em pequena. Sento-me no último banco e rezo baixinho:

“Meu Deus, ajuda-me a encontrar um caminho até à minha filha.”

No final da missa vejo-a ao longe, de mão dada com a Leonor e o Pedro — o marido dela, sempre tão calado perto de mim. Hesito em aproximar-me. O coração bate descompassado.

A Leonor vê-me primeiro e acena timidamente. Mariana aperta-lhe a mão e sussurra-lhe algo ao ouvido. Sinto um nó na garganta.

Quando passo por elas à saída, Mariana evita olhar para mim. Tento sorrir à Leonor:

— Olá, querida…

Ela sorri de volta, mas Mariana puxa-a para junto de si e apressa o passo.

Fico ali parada na rua, sentindo-me invisível.

Naquela noite ligo à Teresa em lágrimas:

— Ela não me perdoa… Nunca mais vou ver a minha neta…

— Calma, Rosa… Dá tempo ao tempo…

Mas o tempo parece ser meu inimigo agora.

Começo a ir ao psicólogo do centro de saúde do bairro. Falo sobre os meus medos, sobre o vazio que sinto em casa, sobre as saudades da Mariana em criança — dos domingos no Jardim da Estrela, dos bolos de chocolate ao lanche…

O doutor Luís diz-me:

— Rosa, às vezes amar demais também pode sufocar quem amamos. Talvez precise de aprender a confiar mais na sua filha…

Penso nisso durante dias. Será possível amar demais? Será possível querer proteger tanto alguém que acabamos por afastá-lo?

Um mês depois recebo uma mensagem da Mariana:

“Mãe, precisamos falar.”

O coração dispara outra vez. Marcamos encontro num café perto da casa dela.

Quando chego, vejo-a sentada sozinha à mesa do canto. Parece cansada, mas menos zangada.

— Mãe… — começa ela — Eu sei que só queres o melhor para mim e para a Leonor… Mas tens de confiar em mim como mãe dela…

Sinto as lágrimas a quererem saltar outra vez.

— Eu sei… Desculpa… Só tenho tanto medo de vos perder…

Ela pega-me nas mãos:

— Não estás louca… Só estás assustada… Mas preciso do teu apoio, não do teu controlo…

Abraçamo-nos ali mesmo no café. Sinto um peso enorme sair-me dos ombros.

Não sei se tudo vai voltar ao normal rapidamente. Sei apenas que preciso aprender a ser mãe e avó sem sufocar quem amo.

Agora pergunto-me: quantas mães já passaram por isto? Quantas avós sentem este medo de serem esquecidas? Será possível amar demais? E como se aprende a deixar ir sem perder quem mais amamos?