Entre Silêncios e Gritos: O Dia em que Fui Esquecida

— Não pode ser verdade, Mariana. Tu viste bem o convite? — A voz do Rui tremia, entre a incredulidade e a raiva.

Eu estava sentada à mesa da cozinha, o envelope branco ainda aberto à minha frente, vazio de qualquer menção ao meu nome. Só o dele, Rui Martins, pai da noiva. O meu coração batia tão alto que mal ouvia as palavras dele.

— Vi, Rui. Não estou lá. — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo uma lágrima quente escorrer pela face. — A Joana não me quer no casamento dela.

O Rui levantou-se de rompante, a cadeira quase caiu atrás dele. Pegou no telemóvel com mãos trémulas e começou a marcar um número que eu conhecia de cor: o da Teresa, ex-mulher dele e mãe da Joana.

— Vais mesmo ligar-lhe? — perguntei, num fio de voz.

— Isto não pode ficar assim! — gritou ele, já com o telemóvel ao ouvido. — Não depois de tudo o que fizeste por ela!

Enquanto ele falava com a Teresa, eu perdi-me nas memórias dos últimos dez anos. Lembrei-me da primeira vez que conheci a Joana: ela tinha treze anos, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo desalinhado e olhos desconfiados. “Não preciso de mais ninguém na minha vida”, disse-me logo na primeira semana. Eu sorri e disse-lhe que não queria substituir ninguém, só queria conhecê-la.

Os anos passaram entre silêncios constrangedores e pequenas vitórias: um sorriso partilhado ao pequeno-almoço, uma conversa sobre exames do secundário, um abraço tímido no Natal. Nunca fui mãe dela, mas tentei ser uma presença segura, alguém em quem ela pudesse confiar.

Agora, tudo parecia ter sido em vão.

O Rui desligou o telefone com um suspiro pesado.

— A Teresa diz que não sabia de nada. Que a decisão foi da Joana. — Ele olhou para mim, olhos vermelhos de raiva e frustração. — Isto é injusto, Mariana. Tu merecias estar lá.

Fiquei calada. O que poderia dizer? Que sim, era injusto? Que me doía mais do que queria admitir? Que me sentia invisível?

Naquela noite, quase não dormi. O Rui virou-se para mim na cama e sussurrou:

— Não vais desistir dela agora, pois não?

Não respondi. Porque naquele momento, não sabia se tinha forças para continuar a tentar.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. O Rui insistia em falar com a Joana, mas ela não atendia as chamadas nem respondia às mensagens. A Teresa ligou-me uma vez:

— Mariana, eu sei que isto é difícil… Mas talvez devas dar-lhe espaço. Ela está nervosa com o casamento, sabes como são estas coisas.

— Eu só queria perceber porquê — confessei-lhe. — Se fiz algo de mal… gostava de saber.

Do outro lado da linha, ouvi um suspiro.

— Às vezes os filhos guardam coisas que nós nem imaginamos. Não é culpa tua.

Mas será mesmo assim? Ou será que falhei em algum momento crucial? Recordei todas as discussões pequenas: quando lhe pedi para arrumar o quarto, quando lhe disse que talvez fosse melhor estudar mais para os exames, quando lhe sugeri que falasse com o pai sobre os problemas na escola. Terá sido demasiado dura? Terá sido demasiado distante?

O Rui começou a afastar-se de mim. Não por falta de amor, mas por frustração. Sentia-se dividido entre mim e a filha. Uma noite, explodiu:

— Não percebo! Tu sempre estiveste lá! Porque é que ela faz isto?

— Talvez nunca tenha estado realmente lá para ela — murmurei.

Ele olhou para mim como se eu tivesse dito a coisa mais absurda do mundo.

— Mariana… tu foste mais mãe para ela do que a própria mãe em muitos momentos! Não te culpes!

Mas eu culpava-me. Culpava-me por cada vez que hesitei antes de lhe dar um abraço, por cada palavra dita com demasiada frieza ou distância. Culpava-me por não ter conseguido conquistar aquele coração fechado.

O dia do casamento chegou como uma ferida aberta. O Rui foi sozinho. Vestiu-se devagar, olhou para mim antes de sair e disse:

— Se mudares de ideias… ainda podes ir comigo.

Abanei a cabeça.

— Não sou bem-vinda lá.

Fiquei sozinha em casa, sentada no sofá com o vestido azul-escuro que tinha comprado semanas antes para a ocasião. Ouvi os risos dos vizinhos no pátio, o som distante de música vindo da igreja ao fundo da rua. Imaginei a Joana de branco, sorridente ao lado do pai… sem mim.

Quando o Rui voltou, já era noite cerrada. Entrou em silêncio e sentou-se ao meu lado.

— Foi bonito — disse apenas. — Mas senti tanto a tua falta…

Olhei para ele e vi nos olhos dele a mesma dor que sentia no meu peito.

Dias depois, recebi uma mensagem inesperada da Joana:

“Desculpa não te ter convidado. Achei que era melhor assim. Não queria dramas no meu dia. Sei que tentaste ser boa para mim… mas nunca consegui sentir-te como família. Espero que entendas.”

Li aquelas palavras vezes sem conta. Chorei tudo o que tinha para chorar. Depois respirei fundo e respondi:

“Compreendo, Joana. Desejo-te toda a felicidade do mundo.”

O Rui ficou devastado quando lhe contei da mensagem. Quis obrigá-la a falar comigo cara a cara, mas pedi-lhe para não insistir mais.

A vida seguiu devagarinho. O Rui e eu fomos reconstruindo a nossa rotina, entre silêncios e pequenas conversas sobre tudo menos sobre a Joana. Às vezes ele recebia fotos do neto recém-nascido e mostrava-mas com um sorriso triste.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar alguém como filha sem nunca ser aceite como mãe? Será que há laços que simplesmente não se criam, por mais que tentemos? E vocês… já se sentiram invisíveis numa família que tentaram construir com tanto amor?