Entre Silêncios e Gritos: O Desmoronar de um Casamento Português
— Vais mesmo sair agora? — perguntou a Ana, com a voz embargada, enquanto eu procurava as chaves do carro em cima da mesa da cozinha. O relógio marcava quase meia-noite e a chuva batia furiosa nas janelas do nosso apartamento em Benfica.
— Preciso de apanhar ar, Ana. Não consigo respirar aqui dentro — respondi, tentando esconder o tremor na voz. Mas ela percebeu. Sempre percebeu tudo em mim, menos aquilo que eu nunca tive coragem de dizer.
O silêncio caiu pesado entre nós, como tantas vezes antes. A televisão ligada no telejornal, o cheiro do café frio, os pratos por lavar — tudo testemunhas mudas do que já não éramos. Lembro-me de olhar para ela e ver nos olhos castanhos a mesma tristeza que sentia em mim. Como é que chegámos aqui?
Quando nos casámos, há oito anos, prometemos tudo um ao outro. Prometemos respeito, amor, honestidade. Prometemos ser melhores do que os nossos pais, não repetir os erros deles. Mas a vida, com as suas contas para pagar, os horários desencontrados e as expectativas da família, foi-nos afastando devagarinho.
A mãe da Ana nunca gostou de mim. Dizia que eu era um sonhador, que nunca ia dar estabilidade à filha dela. O meu pai achava que eu devia ser mais firme, mais homem — como se sentir fosse fraqueza. E nós, no meio disto tudo, tentávamos sobreviver.
— Não vais voltar esta noite, pois não? — insistiu ela, agora com lágrimas nos olhos.
— Não sei — menti. Sabia que não ia voltar. Sabia que ia dormir no carro ou talvez em casa do Rui, o meu melhor amigo desde o liceu. Sabia também que aquela noite era só mais uma entre tantas outras em que fugíamos um do outro.
Saí de casa sem olhar para trás. A chuva lavou-me o rosto e misturou-se com as lágrimas que não consegui segurar. Sentei-me no carro e liguei o rádio para abafar os meus próprios pensamentos. Lembrei-me das palavras do padre no dia do nosso casamento: “O amor é paciente, é benigno…” Tantas vezes ouvi aquela passagem na igreja dos meus avós em Santarém. Mas nunca percebi o peso real dessas palavras até começar a perdê-la.
A verdade é que traí a Ana. Não foi uma traição física — pelo menos não no início. Foi uma traição de confiança, de cumplicidade. Comecei a esconder-lhe coisas pequenas: um jantar com colegas do trabalho, uma mensagem trocada com a Inês — uma amiga antiga que sempre me compreendeu melhor do que ninguém. Quando dei por mim, já não sabia distinguir onde acabava a mentira e começava a verdade.
A Ana também mudou. Fechou-se numa concha depois de perdermos o bebé há três anos. Nunca falámos sobre isso como devíamos. Ela chorava sozinha na casa de banho e eu fingia não ouvir. Fui cobarde. Preferi o silêncio ao confronto, como se ignorar a dor fosse curá-la.
Os meus sogros vinham cá jantar todos os domingos. A mesa cheia de comida e de frases feitas: “O importante é manter a família unida”, “O casamento é para sempre”… Mas ninguém falava do vazio entre mim e a Ana, do frio na cama partilhada, dos sonhos adiados.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro — sempre o dinheiro — atirei-lhe à cara:
— Se estivéssemos mais próximos de Deus, talvez isto não estivesse a acontecer!
Ela olhou para mim como se eu fosse um estranho.
— Agora lembras-te de Deus? Quando foi a última vez que rezaste comigo? Quando foi a última vez que me ouviste?
Não soube responder. Cresci numa família católica praticante, mas fui deixando a fé para trás à medida que crescia. A Ana tentou manter algumas tradições: ir à missa ao domingo, rezar antes das refeições… Eu achava tudo isso perda de tempo. Achava que o amor bastava.
Mas o amor não basta quando se deixa morrer aos poucos.
A Inês apareceu na minha vida como um bálsamo. Ouviu-me quando ninguém mais ouvia. Riu-se das minhas piadas sem graça e perguntou-me como estava — realmente estava — sem esperar respostas automáticas. Não aconteceu nada entre nós além de conversas longas e olhares cúmplices, mas bastou para eu perceber o quanto faltava em casa.
A Ana descobriu as mensagens num sábado à tarde, enquanto eu tomava banho. Entrou no quarto com o telemóvel na mão e os olhos vermelhos.
— É isto que te falta em casa? Uma mulher que te ouve?
Tentei explicar-lhe que não era nada disso, mas ela já não queria ouvir. Gritou comigo como nunca tinha feito antes. Atirou-me à cara todos os silêncios, todas as ausências, todas as promessas quebradas.
— Tu nunca estiveste aqui! Nem quando perdemos o bebé! Nem quando precisei de ti!
Eu chorei também. Pela primeira vez em muito tempo chorei à frente dela.
— Desculpa… Eu não soube ser forte para ti.
Ela abanou a cabeça.
— Eu só queria que estivesses presente. Que me ouvisses. Que rezasses comigo quando tudo desabou.
Naquela noite dormimos em quartos separados pela primeira vez desde que casámos.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas vazias: trabalho-casa-trabalho-casa. Os amigos começaram a afastar-se porque já não sabiam o que dizer ou de que lado ficar. Os meus pais diziam-me para lutar pela Ana; os dela diziam-lhe para me deixar.
Um dia recebi uma mensagem da Inês: “Não posso continuar a ser tua confidente enquanto estiveres casado.” Senti-me sozinho como nunca antes.
Procurei ajuda num padre da paróquia onde fui batizado. Contei-lhe tudo: as mentiras, as dúvidas, a dor da perda do bebé, o afastamento da fé.
— O casamento é feito de escolhas diárias — disse-me ele com uma calma desarmante. — Não é só amor romântico; é compromisso, é perdão, é humildade para pedir ajuda quando não sabemos o caminho.
Voltei para casa decidido a tentar salvar o que restava do nosso casamento. Encontrei a Ana sentada no sofá com uma mala feita ao lado dos pés.
— Vou para casa dos meus pais por uns tempos — disse ela sem me olhar nos olhos.
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe as mãos.
— Não quero perder-te… Sei que falhei contigo em tudo aquilo que prometi ser.
Ela chorou baixinho e encostou-se ao meu ombro pela última vez.
— Eu também falhei contigo… Deixei de acreditar que podíamos ser felizes juntos.
Ficámos ali sentados até ela se levantar e sair porta fora sem olhar para trás.
Hoje escrevo estas palavras sentado no mesmo sofá onde tantas vezes sonhámos juntos um futuro melhor. O apartamento está vazio; só se ouve o eco dos nossos silêncios antigos.
Pergunto-me todos os dias: se tivéssemos ouvido mais um ao outro? Se tivéssemos rezado juntos quando tudo parecia perdido? Se tivéssemos tido humildade para pedir ajuda antes de ser tarde demais?
Será que ainda havia salvação para nós? E vocês — quantas vezes deixaram morrer um amor por medo de enfrentar a verdade?