Entre Silêncios e Gritos: A Minha Luta Pela Guarda dos Meus Filhos
— Não vou deixar que leves os miúdos, Inês! — gritou o Rui, a voz dele ecoando pela cozinha como um trovão. Eu tremia, agarrada à bancada, sentindo o cheiro do café frio e das lágrimas que já não conseguia conter. O Miguel e a Leonor estavam no quarto, provavelmente a ouvir tudo, como sempre. Tentei manter a voz firme, mas saiu-me um sussurro: — Eles precisam de mim, Rui. Preciso deles também.
Nunca pensei que chegássemos aqui. Treze anos de casamento, dois filhos, uma casa cheia de memórias — e agora só restava este vazio, este silêncio pesado entre nós. O Rui já não me olhava como antes. Podia vestir o vestido azul que ele adorava, arranjar o cabelo, pôr perfume… nada mudava. Ele passava por mim como se eu fosse invisível. Só recebia flores duas vezes por ano: no meu aniversário e no Dia da Mãe. E mesmo assim, eram sempre as mesmas rosas vermelhas, compradas à pressa na florista da esquina.
No início, pensei que era só uma fase. O trabalho dele no banco estava cada vez mais exigente, dizia ele. Mas depois começaram as discussões por tudo e por nada: o jantar queimei porque estava distraída com os trabalhos da Leonor; o Miguel esqueceu-se do casaco na escola e era culpa minha; até o cão, o Bolota, parecia ser motivo para acusações. E eu? Eu sentia-me cada vez mais pequena.
A minha mãe dizia-me para ter paciência. “Os homens são assim, filha. Tens de saber ceder.” Mas eu já não conseguia ceder mais. Uma noite, depois de mais uma discussão em que ele atirou um prato contra a parede — o prato do nosso serviço de casamento — percebi que não podia continuar ali. Liguei à minha amiga Vera, que me ouviu chorar durante horas ao telefone.
— Inês, tu mereces ser feliz. Não te deixes apagar — disse ela.
Foi ela que me recomendou a Dra. Natália, uma advogada conhecida por não ter papas na língua. Na primeira reunião, Natália olhou-me nos olhos e disse:
— Inês, isto vai ser duro. O Rui vai lutar com tudo o que tem. Mas se é pelos teus filhos, não podes vacilar.
E assim começou a guerra. Rui recusava-se a sair de casa. Dormíamos em quartos separados. Os miúdos começaram a perguntar porque é que o pai estava sempre zangado e porque é que eu chorava à noite. Tentei protegê-los do pior, mas como se protege alguém do frio quando a casa já não tem janelas?
As audiências foram um pesadelo. Rui contratou um advogado caro, daqueles que usam gravata vermelha e sorriem pouco. No tribunal, ele pintou-me como uma mãe instável, emocionalmente frágil. Disse que eu era demasiado protetora, que não deixava os miúdos respirar. Eu sentia-me nua diante do juiz, cada palavra dele uma facada.
— A Inês sempre foi uma boa mãe — testemunhou a Vera — mas tem sofrido muito com esta situação.
A minha sogra apareceu para dizer que eu era fria com o Rui e que nunca fui “mulher para ele”. Senti-me traída; ela tinha sido como uma segunda mãe para mim.
Em casa, os miúdos começaram a mudar. O Miguel fechava-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos; a Leonor fazia desenhos de famílias partidas ao meio. Uma noite, ela perguntou-me:
— Mãe, vais mesmo embora?
Abracei-a tão forte que pensei que me ia desfazer.
No meio disto tudo, comecei a duvidar de mim própria. Olhava-me ao espelho e via uma mulher cansada, com olheiras fundas e cabelo despenteado. Lembrei-me das vezes em que outros homens me olhavam na rua — um sorriso aqui, um elogio ali — mas isso agora parecia tão distante como outra vida.
A Natália insistia:
— Tens de cuidar de ti, Inês. Não podes lutar pelos teus filhos se não te levantares primeiro.
Comecei a correr de manhã cedo, antes dos miúdos acordarem. O Bolota vinha comigo e, aos poucos, fui recuperando alguma força nas pernas… e no coração.
O Rui tentou manipular os miúdos:
— A mãe quer separar-nos porque já não gosta de nós — ouvi-o dizer ao Miguel.
Enfrentei-o:
— Não metas os nossos filhos nisto! Eles não têm culpa!
Ele riu-se:
— Achas mesmo que vais ganhar? Achas que algum juiz vai dar-te a guarda?
Nessa noite escrevi uma carta aos meus filhos. Não sabia se algum dia iriam lê-la, mas precisava de lhes dizer tudo o que sentia: o medo de os perder, o amor imenso que tinha por eles, a esperança de que um dia percebessem porque é que lutei tanto.
O julgamento final foi numa manhã cinzenta de novembro. Chovia tanto que Lisboa parecia afundar-se no Tejo. Sentei-me ao lado da Natália; ela apertou-me a mão com força.
O juiz ouviu-nos durante horas. Falámos dos horários escolares dos miúdos, das rotinas deles, das noites em que só eu conseguia acalmar a Leonor quando tinha pesadelos.
No fim, o juiz falou devagar:
— Considerando o superior interesse das crianças…
Senti o coração parar por um segundo.
— …a guarda será atribuída à mãe, Inês Martins.
Chorei ali mesmo na sala do tribunal. O Rui saiu sem olhar para trás.
A vida depois disso não foi fácil. Os miúdos precisaram de tempo para se adaptar; eu precisei de tempo para me perdoar por tudo o que não consegui salvar. Mas aos poucos fomos encontrando um novo equilíbrio: jantares simples à mesa da cozinha nova; risos tímidos ao domingo no jardim; noites em que já não chorava sozinha.
Às vezes pergunto-me: será que fiz tudo certo? Será que algum dia vou voltar a confiar em alguém? Mas olho para os meus filhos a dormir e penso: talvez a coragem seja isto — continuar mesmo quando tudo parece perdido.
E vocês? Já sentiram que tiveram de se perder para se reencontrar? O que fariam se estivessem no meu lugar?