Entre Sangue e Coração: O Preço da Escolha

— O que estás a fazer, pai? Vais mesmo ficar do lado dela? — A voz do Pedro ecoou pela cozinha, carregada de mágoa e raiva. Eu estava de costas, a preparar um chá para a Milena, que chorava baixinho na sala. O meu coração batia descompassado, como se cada palavra do meu filho fosse uma martelada na minha consciência.

Nunca imaginei que a minha vida chegaria a este ponto. Sempre fui um homem simples, trabalhador — cresci em Vila Nova de Gaia, filho de pescadores, aprendi desde cedo que família é tudo. Mas ninguém nos ensina o que fazer quando a família se parte ao meio, quando o sangue se transforma em faca.

Pedro e Milena casaram-se jovens, apaixonados como só se é aos vinte anos. Eu e a Teresa, minha falecida mulher, acolhemos Milena como filha. Ela vinha de uma família complicada, cheia de silêncios e ausências. Aqui encontrou calor, mesa cheia e gargalhadas. Quando nasceu o Miguel, o meu neto, senti que a vida me tinha dado uma segunda oportunidade de ser feliz.

Mas os anos passaram e as coisas mudaram. Pedro começou a chegar tarde a casa, sempre com desculpas do trabalho. Milena foi ficando mais calada, mais magra. Um dia, ela apareceu com um olho negro. Disse que tinha caído nas escadas. Eu quis acreditar.

— Pai, não te metas onde não és chamado — Pedro avisou-me uma noite, quando tentei falar sobre o casamento deles. — Isto é entre mim e ela.

Mas eu via o medo nos olhos da Milena. E via também o Miguel a esconder-se atrás das pernas da mãe sempre que o Pedro levantava a voz.

O divórcio foi feio. Pedro saiu de casa, levou metade dos móveis e deixou Milena com as contas por pagar. Eu tentei ajudar como pude: levava comida, pagava a luz quando cortavam. Pedro descobriu e deixou de me falar durante semanas.

— O teu filho precisa de ti — dizia-me a minha irmã Lurdes ao telefone. — Não podes escolher a ex-nora em vez dele.

Mas como podia eu virar as costas à Milena e ao Miguel? Eles eram minha família também. E eu sabia demais para fingir que não sabia.

Certa noite, Milena apareceu à minha porta com o Miguel ao colo. Chovia torrencialmente. Ela tremia dos pés à cabeça.

— Dragan, desculpe… Não tenho para onde ir — sussurrou.

Abri-lhes a porta sem hesitar. Preparei-lhes um quarto, dei-lhes sopa quente. O Miguel adormeceu agarrado à minha mão.

No dia seguinte, Pedro apareceu furioso.

— Traíste-me! — gritou à porta da minha casa. — És meu pai ou dela?

Senti-me rasgado por dentro. O meu filho olhava para mim como se eu fosse um estranho.

— Sou teu pai — respondi baixinho — mas também sou avô do Miguel. E não posso deixar que eles passem fome ou frio.

Pedro virou costas e nunca mais entrou em minha casa.

Os meses passaram. Milena arranjou trabalho numa pastelaria, mas o dinheiro mal chegava para pagar o infantário do Miguel. Eu ajudava como podia: buscava o miúdo à escola, fazia-lhe o jantar, ensinava-o a jogar à sueca como fizera com o Pedro em pequeno.

A vizinhança começou a cochichar. Diziam que eu era tolo, que estava a criar problemas para mim próprio. Alguns amigos afastaram-se. A solidão pesava-me nos ombros como uma manta molhada.

Às vezes acordava de noite com saudades do Pedro em pequeno: lembro-me dele a correr pela praia, os cabelos loiros ao vento, os olhos brilhantes de alegria. Onde foi que errei? Porque é que tudo se desfez assim?

Um domingo à tarde, durante um almoço silencioso com Milena e Miguel, ouvi bater à porta. Era Pedro.

— Vim buscar as minhas coisas — disse secamente.

Milena ficou pálida. Miguel correu para o quarto.

Pedro entrou na casa como um estranho: olhou para mim com desprezo, ignorou Milena e saiu com uma caixa de livros antigos.

Quando já estava na rua, virou-se:

— Espero que sejas feliz com a tua nova família.

Fechei a porta devagarinho e encostei-me à parede. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto sem conseguir travá-las.

As semanas seguintes foram um arrastar de dias iguais: trabalho, casa, cuidar do Miguel enquanto Milena fazia turnos duplos na pastelaria. Às vezes ela chorava baixinho no quarto; outras vezes sorria ao ver o filho brincar no tapete da sala.

No Natal desse ano, preparei uma ceia simples: bacalhau com broa e rabanadas como a Teresa fazia. Convidei Pedro por mensagem; ele não respondeu.

Na manhã seguinte encontrei um envelope na caixa do correio: uma carta do Pedro.

“Pai,

Não consigo perdoar-te por teres escolhido ela em vez de mim. Sinto-me traído. Mas talvez um dia entendas o que é ser posto de lado pelo próprio sangue.
Pedro”

Li aquelas palavras vezes sem conta até as letras se desfocarem nas lágrimas. Senti-me velho e cansado como nunca antes.

Os anos passaram devagarinho. O Miguel cresceu — tornou-se um rapazinho doce e sensível, apaixonado por futebol e livros de aventuras. Milena conseguiu finalmente alugar um pequeno apartamento perto da escola do filho; eu continuei presente todos os dias possíveis.

Pedro nunca mais me procurou. Soube por conhecidos que arranjou outra mulher e mudou-se para Lisboa. Não veio ao funeral da tia Lurdes nem ao batizado do filho do nosso primo Rui.

Às vezes dou por mim sentado no banco do jardim onde costumávamos jogar à bola juntos quando ele era criança. Olho para as famílias felizes à minha volta e pergunto-me se fiz bem ou mal.

Apoiei Milena porque não consegui fechar os olhos ao sofrimento dela nem do Miguel. Mas perdi o meu próprio filho nesse processo.

Será que escolhi certo? Será que há perdão possível quando se parte o coração de um filho para salvar outro membro da família?

Se pudesse voltar atrás… faria diferente? Ou será que ser humano é mesmo isto: escolher entre dois amores impossíveis?

E vocês? O que teriam feito no meu lugar?