Entre Sacrifícios e Silêncios: O Peso de Ser Avó

— Mãe, não podes vir este fim de semana. A Maria precisa de descansar, e a casa está cheia — disse o Daniel, a voz dele abafada pelo barulho de fundo, talvez a televisão ou a mãe da Maria a falar alto na cozinha.

Fiquei com o telemóvel na mão, o coração apertado. Não era a primeira vez que ouvia aquela frase, mas cada vez doía mais. Desde que o Daniel casou com a Maria e foram viver com os pais dela, a minha presença tornou-se um incómodo. Não era assim que eu imaginava a minha vida de avó. Sempre sonhei em ser aquela avó que faz bolos ao domingo, que conta histórias ao serão, que tem sempre um colo disponível. Mas, de repente, parecia que eu era um estorvo.

Lembro-me do dia do casamento deles. O Daniel estava tão feliz, e eu, apesar de ter algumas reservas quanto à Maria — sempre achei que ela era demasiado fria, demasiado prática —, engoli o orgulho e sorri. O meu marido, o António, já tinha partido há anos, e o Daniel era o meu único filho. Sempre fomos muito próximos. Quando ele me disse que iam viver com os pais da Maria, tentei não mostrar a desilusão. “É só até arranjarmos casa”, disse-me ele. Mas já lá vão três anos.

No início, ainda me convidavam para almoços de domingo. Eu levava o meu arroz doce, a minha tarte de maçã, e sentava-me à mesa com a família da Maria. Mas nunca me senti em casa. A mãe dela, a Dona Lurdes, era daquelas mulheres que falam alto e não deixam ninguém meter a colher. “Aqui em casa, fazemos assim”, dizia ela, sempre que eu tentava ajudar. O pai, o Senhor Joaquim, passava o tempo a ver futebol e a resmungar sobre o preço da eletricidade. E a Maria… bem, a Maria parecia sempre cansada, sempre com pressa, como se eu fosse mais uma tarefa na lista dela.

Quando nasceu a Leonor, a minha neta, pensei que tudo ia mudar. Achei que finalmente ia ter o meu lugar. Mas a casa era pequena, e a Dona Lurdes fazia questão de ser a avó principal. “A Leonor está habituada a mim”, dizia ela. Eu via a minha neta uma vez por semana, e mesmo assim, só quando dava jeito à Maria. Uma vez, ofereci-me para ficar com a Leonor para eles irem ao cinema. A Maria agradeceu, mas disse que a mãe dela já tinha planeado tudo. Senti-me rejeitada, inútil.

O Daniel tentava apaziguar as coisas. “Mãe, a Maria está cansada, dá-lhe tempo”, dizia ele. Mas eu via nos olhos dele o peso da situação. Ele queria agradar a todos, mas acabava por não agradar a ninguém. Uma noite, ligou-me à pressa. “Mãe, podes vir cá amanhã? A Leonor está doente e a Maria tem de ir trabalhar.” O meu coração saltou de alegria. No dia seguinte, acordei cedo, preparei uma canja e fui para Almada. Quando cheguei, a Dona Lurdes já lá estava, de avental posto, a dar ordens. “Pode deixar, Dona Teresa, eu trato dela. A senhora já fez muito, descanse.” Fiquei na sala, a ouvir a Leonor chorar no quarto, sem saber o que fazer com as mãos.

Os meses foram passando, e eu fui-me afastando. Comecei a inventar desculpas para não ir aos almoços. Dizia que tinha consultas, que estava cansada. O Daniel percebia, mas não dizia nada. A Maria parecia aliviada. Só a Leonor, quando me via, corria para mim com os braços abertos. “Avó, conta-me uma história!” E eu contava, agarrada àquele bocadinho de felicidade.

Um dia, a Maria ligou-me. “Dona Teresa, pode ficar com a Leonor amanhã? Tenho uma entrevista de trabalho e a minha mãe não pode.” Senti um nó na garganta. “Claro, Maria, com todo o gosto.” Passei o dia com a minha neta, fomos ao parque, fizemos bolachas, rimos até doer a barriga. Quando a Maria voltou, olhou para a Leonor e disse: “Hoje estás muito animada.” Eu sorri, mas ela não retribuiu. “Espero que não lhe tenha dado doces, ela fica impossível à noite.” Senti-me uma criança apanhada em falta.

Nessa noite, chorei. Chorei pelo Daniel, pela Leonor, por mim. Senti-me sozinha, desnecessária. Liguei à minha irmã, a Rosa. “Teresa, tu tens de te impor. És a avó dela, tens direitos.” Mas eu não queria conflitos. Queria paz, queria amor. Queria ser aceite.

O tempo foi passando, e a distância entre mim e o Daniel aumentou. Ele ligava menos, vinha menos vezes a minha casa. No Natal, convidaram-me para ir lá jantar, mas eu sabia que era por obrigação. Levei um presente para a Leonor, um livro de histórias. Quando ela o abriu, a Dona Lurdes disse: “Mais um livro? Ela já tem tantos…” Senti-me pequena, invisível.

No início deste ano, o Daniel apareceu em minha casa, sozinho. Sentou-se à mesa, calado. “O que se passa, filho?” Ele olhou para mim, os olhos vermelhos. “Mãe, não aguento mais. A Maria não quer sair de casa dos pais, diz que não temos dinheiro. Eu sinto-me sufocado. Sinto que perdi a minha família.” Abracei-o, e chorámos juntos. Pela primeira vez, senti que não estava sozinha na minha dor.

Depois dessa conversa, tentei aproximar-me da Maria. Convidei-a para um café, tentei falar com ela sobre a infância dela, sobre os sonhos dela. Ela foi cordial, mas distante. “A minha mãe sempre fez tudo por mim. Eu não sei ser diferente.” Percebi que ela também estava presa, também tinha medo de desiludir a mãe. Era um ciclo sem fim.

A Leonor crescia, e eu via-a cada vez menos. Quando fazia anos, a Maria organizava festas só para a família dela. O Daniel dizia que era para evitar discussões. Eu mandava presentes pelo correio, escrevia cartas. A Leonor respondia com desenhos, corações e flores. Era o nosso segredo.

No verão passado, a Leonor ficou doente. Uma gripe forte, nada de grave, mas eu quis ir vê-la. A Maria disse que não era preciso, que a mãe dela estava a tratar de tudo. Fiquei em casa, a olhar para o telefone, à espera de notícias. Senti-me inútil, descartável.

Comecei a pensar na minha vida, nas escolhas que fiz. Sempre pus o Daniel em primeiro lugar, abdiquei de muita coisa por ele. Agora, sentia que não tinha direito a nada. Perguntei-me se era isso que significava ser uma boa avó: sacrificar tudo, aceitar tudo, calar tudo. Ou se, pelo contrário, devia lutar pelo meu lugar, exigir respeito.

Uma tarde, a Leonor ligou-me pelo telemóvel do pai. “Avó, tenho saudades tuas. Quando vens brincar comigo?” O Daniel pegou no telefone. “Mãe, desculpa. Eu sei que isto não é justo. Mas não sei como mudar as coisas.” Senti uma raiva surda, uma vontade de gritar. Mas respirei fundo. “Filho, eu amo-vos. Mas também preciso de ser amada.”

Agora, passo os dias entre o silêncio da minha casa e as memórias do que podia ter sido. Vejo as outras avós no parque, rodeadas de netos, e pergunto-me onde errei. Será que devia ter lutado mais? Será que devia ter imposto limites? Ou será que ser avó, em Portugal, é isto: estar sempre disponível, mesmo quando ninguém quer saber?

Às vezes, olho para a fotografia do Daniel em pequeno e pergunto-me: “Se eu tivesse feito tudo diferente, será que hoje teria uma família? Ou será que, no fundo, ser avó é aprender a perder, vez após vez?”

E vocês, o que acham? Uma avó deve sacrificar tudo pela família, mesmo que isso signifique perder-se a si própria? Ou há um limite para o amor e o sacrifício?