Entre Quatro Paredes: Três Gerações Num T2 de Lisboa

— Mãe, não podemos continuar assim. Naquela sala não cabe mais ninguém! — gritou a Ana, a minha nora, enquanto eu tentava não tremer ao segurar a chávena de café. O Kacper, o meu neto de seis anos, corria pelo corredor, tropeçando nos brinquedos espalhados. O meu filho, Rui, olhava para mim com aquele olhar cansado, como se pedisse desculpa por tudo e por nada ao mesmo tempo.

A minha cabeça latejava. “É para o Kacper”, repetia a Ana, como se eu não soubesse. “Naquela kawalerce vamos sufocar todos.”

A palavra polaca dela soava estranha entre as paredes do nosso T2 em Benfica. Eu nunca pensei que a minha vida chegasse a isto: três gerações apertadas em cinquenta e cinco metros quadrados, cada um com as suas dores e sonhos esmagados pelo teto baixo e pelas contas por pagar.

Fechei-me na casa de banho. Não para me lavar ou arranjar — já nem me lembro da última vez que me pintei — mas para chorar em silêncio. Sentei-me na borda da banheira, as mãos a tapar a cara, tentando abafar o soluço. Do outro lado da parede, ouvia-se o Rui a perguntar pela manteiga, a Ana a rir-se nervosa, o Kacper a pedir desenhos animados.

Lembro-me do dia em que o Rui nasceu. Era um verão quente, eu e o António ainda juntos, cheios de planos. Agora, o António foi-se embora com outra mulher há dez anos e eu fiquei com as promessas por cumprir e um filho adulto que voltou para casa porque não consegue pagar uma renda sozinho.

A Ana veio da Polónia há sete anos. Conheceu o Rui na faculdade e apaixonaram-se rápido demais. Quando engravidou do Kacper, tudo mudou. O trabalho dela no café não chega para muito; o Rui faz turnos intermináveis num call center. E eu? Reformada antecipada da escola primária onde dei aulas trinta anos. O dinheiro mal chega para os medicamentos.

— Mãe, precisamos falar — disse o Rui uma noite, enquanto eu lavava a loiça.

— Sobre quê? — perguntei, já sabendo a resposta.

— A Ana quer procurar casa. Só para nós três.

O prato escorregou-me das mãos e partiu-se no chão. O barulho fez o Kacper chorar na sala.

— Não é por mal — continuou o Rui, baixando a voz. — Mas ela sente-se sufocada aqui. Eu também…

Sufocada? E eu? Não sou eu que perdi o quarto para dar espaço ao neto? Não sou eu que acordo às seis para preparar pequenos-almoços diferentes porque a Ana não gosta de pão português? Não sou eu que finjo não ouvir as discussões deles à noite?

Naquela noite não dormi. Fiquei sentada à janela da cozinha, a olhar para as luzes da cidade e a pensar onde errei. Será que fui má mãe? Será que devia ter dito ao Rui para nunca voltar? Mas como podia? Ele é meu filho.

Os dias passaram entre silêncios e pequenas guerras domésticas: quem deixou a luz acesa, quem gastou o último iogurte, quem ficou demasiado tempo na casa de banho. O Kacper começou a fazer perguntas difíceis:

— Avó, porque é que a mamã chora à noite?

Abracei-o com força.

— Porque às vezes os adultos também ficam tristes, meu amor.

No domingo seguinte, durante o almoço, a Ana explodiu:

— Isto não é vida! O Kacper precisa de espaço! Eu preciso de espaço! — gritou ela, batendo com os talheres na mesa.

O Rui tentou acalmá-la, mas ela levantou-se e foi fechar-se no quarto. O Kacper ficou calado, olhos grandes de medo.

— Mãe… — começou o Rui.

— Não digas nada — interrompi. — Eu percebo. Vocês querem ir embora.

O silêncio pesou entre nós como uma pedra.

Nessa noite voltei à casa de banho. Sentei-me no chão frio e chorei até não ter mais lágrimas. Lembrei-me da minha mãe, dos sacrifícios dela por mim. Será que ela também se sentiu assim? Tão sozinha no meio da família?

Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: preparar lancheiras, lavar roupa, fingir que tudo estava bem. A Ana começou a procurar casas online; mostrava ao Rui anúncios de apartamentos minúsculos em bairros longe do centro. Ele dizia sempre:

— Não temos dinheiro para isto…

Uma noite ouvi-os discutir baixinho:

— Se a tua mãe vendesse esta casa podíamos comprar algo maior…

O meu coração apertou-se. Vender esta casa? O único lugar onde ainda me sinto alguém?

No dia seguinte confrontei-os:

— Ouvi-vos ontem à noite. Acham mesmo que vender esta casa é solução? Para onde é que eu iria?

A Ana ficou vermelha; o Rui olhou para o chão.

— Mãe… não era isso…

— Era sim! — gritei eu pela primeira vez em anos. — Vocês querem que eu desapareça?

O Kacper apareceu à porta da cozinha com os olhos cheios de lágrimas.

— Avó…

Ajoelhei-me ao lado dele e abracei-o com força.

— Desculpa, meu amor…

Depois desse dia, tudo mudou. A Ana começou a sair mais vezes sozinha; o Rui chegava cada vez mais tarde do trabalho. Eu passava horas sozinha em casa, ouvindo apenas o tique-taque do relógio e os meus próprios pensamentos.

Uma tarde recebi uma carta do hospital: preciso de fazer exames ao coração. Não contei nada a ninguém. Para quê preocupar ainda mais?

No aniversário do Kacper fiz um bolo simples; ele soprou as velas rodeado de silêncio constrangido. A Ana tirou fotos sem sorrir; o Rui fingiu entusiasmo.

Nessa noite sentei-me outra vez na casa de banho escura e perguntei-me: será este o preço do amor? Sacrificar tudo por quem amamos… mesmo quando já não há espaço nem para respirar?

Talvez haja outras famílias como a nossa: presas entre paredes pequenas e sonhos ainda menores. Será que algum dia vamos encontrar espaço para sermos felizes juntos? Ou será que estamos condenados a sufocar devagarinho uns com os outros?