Entre Quatro Paredes: Quando a Família se Torna um Risco
— Não é justo, Dona Amélia! — gritei, sentindo o nó apertar-me a garganta. — O apartamento é meu, foi o meu pai que me deixou!
Ela olhou-me com aquele olhar frio, de quem já decidiu tudo antes sequer de perguntar. O meu marido, o Rui, estava sentado ao meu lado, calado, a olhar para o prato como se o arroz de pato lhe pudesse dar as respostas que não tinha coragem de dizer em voz alta.
A sala estava abafada, o cheiro do jantar misturava-se com a tensão. O relógio da parede marcava nove e meia, mas parecia que o tempo tinha parado desde que a Dona Amélia largou aquela bomba:
— Se querem mesmo trocar de casa connosco, menina Sofia, só faz sentido se o apartamento ficar no meu nome. Assim garanto que tudo fica em família.
Fiquei sem palavras. O Rui mexeu-se na cadeira, finalmente levantou os olhos para mim. Vi neles um pedido de desculpa mudo, mas também uma fraqueza que me magoou mais do que qualquer palavra da sogra.
— Mãe, não sei se isso é razoável… — murmurou ele.
— Razoável? — interrompeu ela. — Eu criei-te sozinha depois do teu pai morrer! Sempre pus a família em primeiro lugar. Agora é a tua vez de fazer o mesmo.
A minha cabeça girava. Lembrei-me de quando era miúda e o meu pai me levava ao Jardim da Estrela aos domingos. Ele dizia sempre: “Sofia, nunca deixes ninguém decidir por ti.” E agora estava ali, prestes a entregar tudo o que ele me deixou nas mãos de uma mulher que nunca me aceitou verdadeiramente.
O Rui tentou segurar-me a mão debaixo da mesa. Afastei-a devagar. Não queria chorar ali, não queria mostrar fraqueza. Mas sentia-me sozinha, encurralada entre o medo de perder o Rui e o terror de ficar sem nada.
— Preciso de pensar — disse, levantando-me abruptamente.
Fui para a varanda. Lisboa brilhava lá em baixo, indiferente ao drama que se desenrolava naquele terceiro andar em Campo de Ourique. Senti o vento frio na cara e deixei as lágrimas caírem finalmente.
O Rui veio ter comigo pouco depois.
— Sofia… desculpa. Eu não sabia que a minha mãe ia propor isto. Mas sabes como ela é… Se não aceitarmos, nunca mais nos fala.
— E se aceitarmos? — perguntei, virando-me para ele. — Fico eu sem nada? E se um dia as coisas correm mal entre nós?
Ele ficou calado. O silêncio dele doía mais do que qualquer resposta.
Nos dias seguintes, a tensão só aumentou. A Dona Amélia ligava todos os dias ao Rui, pressionava-o com histórias sobre sacrifícios e família. A minha mãe, quando lhe contei tudo, ficou furiosa:
— Nem penses nisso! A casa é tua! Eles querem é garantir que nunca sais dali com nada!
Mas eu via o Rui cada vez mais distante, mais ansioso. Começou a chegar tarde do trabalho, evitava falar sobre o assunto. Uma noite, ouvi-o ao telefone com a mãe:
— Não sei se ela vai aceitar… Sim… Eu sei… Mas não posso obrigá-la…
Senti-me traída. Afinal, ele estava do lado dela? Ou só não tinha coragem de me defender?
No domingo seguinte, fomos almoçar à casa da Dona Amélia em Almada. O ambiente era glacial. Ela serviu-nos bacalhau à Brás como se nada fosse.
— Então, Sofia? Já pensaste melhor? — perguntou ela enquanto me servia.
Olhei para o Rui. Ele desviou o olhar.
— Pensei sim — respondi com voz trémula mas firme. — E decidi que não vou passar a casa para ninguém. Se quiserem trocar de casa connosco, fazemos tudo legalmente e cada um fica com o seu nome na escritura.
A Dona Amélia largou os talheres com força.
— És muito egoísta! Não pensas no Rui nem na família! Só pensas em ti!
O Rui tentou acalmar a mãe, mas ela levantou-se e saiu da sala batendo com a porta.
O resto do almoço foi um silêncio pesado. No carro, a caminho de casa, o Rui finalmente falou:
— Sabes que isto vai mudar tudo, não sabes?
— Já mudou — respondi baixinho.
As semanas seguintes foram um inferno. A Dona Amélia deixou de falar comigo e começou a ligar ao Rui todos os dias para lhe dizer que eu estava a destruir a família. O Rui ficou cada vez mais distante. Dormíamos costas voltadas. Às vezes acordava e via-o sentado na sala às três da manhã, perdido nos pensamentos.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre casas e nomes nas escrituras, ele explodiu:
— Não percebes que estás a pôr tudo em risco? A minha mãe nunca mais vai olhar para mim da mesma maneira!
— E tu? Vais olhar para mim como? Como alguém que perdeu tudo para agradar à tua mãe?
Ele não respondeu. Saiu de casa e só voltou de manhã.
Comecei a sentir-me cada vez mais sozinha naquela casa cheia de memórias do meu pai. Os amigos começaram a afastar-se porque já não aguentavam ouvir sempre os mesmos dramas. No trabalho andava distraída, cometia erros parvos.
Um dia recebi uma carta da Dona Amélia: “Se não fizeres isto pelo Rui, nunca serás parte desta família.”
Chorei como há muito tempo não chorava. Mas depois limpei as lágrimas e liguei à minha mãe:
— Mãe… preciso de ti.
Ela veio logo ter comigo. Sentámo-nos na cozinha a beber chá como fazíamos quando eu era adolescente e tinha medo do escuro.
— Não estás sozinha — disse ela. — Tens de ser forte por ti e pelo teu pai.
Naquela noite tomei uma decisão: ia lutar pelo que era meu, mesmo que isso significasse perder o Rui.
Quando lhe disse isso, ele ficou em silêncio durante muito tempo.
— Então é isto? Vais escolher uma casa em vez da nossa família?
— Não é só uma casa — respondi. — É tudo o que eu sou. Tudo o que lutei para ter respeito nesta família.
Ele saiu sem dizer mais nada.
Passaram-se semanas sem notícias dele. A Dona Amélia continuou a ligar-me mas eu já não atendia. Comecei finalmente a dormir melhor, a sentir-me dona do meu espaço outra vez.
Um mês depois recebi uma mensagem do Rui: “Desculpa por tudo.”
Não sei se algum dia vamos voltar a ser os mesmos. Mas aprendi que às vezes proteger-nos é o maior ato de amor próprio que podemos ter.
E vocês? Já tiveram de escolher entre proteger-se ou agradar à família? Até onde iriam por alguém que amam?