Entre Quatro Paredes: Quando a Família se Torna um Risco
— Não leves a mal, Mariana, mas acho que seria melhor para todos se trocássemos de casa — disse a minha sogra, Dona Emília, com aquele sorriso tenso que nunca me convenceu. — O teu apartamento é mais perto do centro, mais moderno… E tu sabes que eu já não tenho paciência para subir tantas escadas.
O garfo tremeu-me na mão. Olhei para o Luís, o meu marido, à espera de um sinal, uma palavra de apoio. Mas ele desviou o olhar para o prato, como se o arroz de pato fosse subitamente o assunto mais interessante do mundo.
— Mas… Dona Emília, não percebo. O seu apartamento é maior, tem varanda… — tentei argumentar, sentindo o nó na garganta apertar.
Ela pousou o copo de vinho com força na mesa. — Mariana, não compliques. Eu já falei com o Luís. Só faz sentido se tu passares o apartamento para o meu nome. Assim fica tudo em família, não é?
A sala ficou gelada. O relógio da parede parecia bater mais alto. Senti-me encurralada, como se as paredes se fechassem sobre mim.
Naquela noite, depois de ela sair, virei-me para o Luís:
— Tu sabias disto?
Ele suspirou, cansado. — A minha mãe só quer garantir que tudo fica bem para todos. Ela está sozinha desde que o meu pai morreu…
— E eu? Eu não conto? O apartamento é meu! Foi a única coisa que o meu pai me deixou antes de morrer!
O Luís levantou-se e foi fumar para a varanda. Fiquei sozinha na sala, a olhar para as fotografias na estante: eu e ele no nosso casamento, os meus pais sorridentes, já ambos desaparecidos. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era só o apartamento. Era tudo o que ele representava: a minha independência, a memória do meu pai, a minha segurança.
Os dias seguintes foram um inferno. Dona Emília ligava-me todos os dias:
— Já pensaste melhor? Olha que eu não vou viver para sempre…
As minhas amigas diziam-me para não ceder:
— Mariana, tu és maluca? Vais dar a tua casa à tua sogra? E se um dia te separares do Luís?
Mas havia também aquela voz dentro de mim: “E se ela tem razão? E se estou a ser egoísta?”
Comecei a reparar em pequenas coisas: o Luís chegava mais tarde do trabalho, evitava falar do assunto. Uma noite, ouvi-o ao telefone com a mãe:
— Sim, mãe… Eu sei… Mas ela está difícil…
Senti-me traída. Já não era só uma questão de casas. Era uma questão de confiança.
No domingo seguinte, fomos almoçar à casa da Dona Emília. Ela tinha preparado bacalhau com natas — o prato favorito do Luís. Sentámo-nos à mesa e ela lançou logo:
— Então, Mariana? Já decidiste?
Olhei para ela e depois para o Luís. Senti as lágrimas a quererem saltar.
— Não posso fazer isso — disse baixinho. — O apartamento é tudo o que me resta do meu pai.
O silêncio foi absoluto. O Luís largou os talheres.
— Mariana… — começou ele, mas eu levantei-me.
— Desculpem. Preciso de apanhar ar.
Saí para a rua e sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio. O vento frio cortava-me a cara, mas não me importei. Liguei à minha irmã:
— Marta, preciso de falar contigo.
Ela veio ter comigo meia hora depois. Sempre foi a minha âncora.
— Não cedas — disse ela logo. — Se cedes agora, nunca mais recuperas.
Mas eu sentia-me dividida. O Luís era o homem com quem eu queria construir uma família. Mas como confiar nele depois disto?
Nessa noite, quando cheguei a casa, ele estava à minha espera na sala.
— Mariana, desculpa. Eu devia ter-te defendido. Mas estou no meio das duas mulheres da minha vida…
Sentei-me ao lado dele.
— E eu? Estou sozinha no meio disto tudo.
Ele pegou-me na mão.
— Não quero perder-te.
— Então prova-o — disse eu. — Diz à tua mãe que isto acabou.
No dia seguinte, ele foi falar com ela. Quando voltou estava pálido.
— Ela ficou furiosa. Disse que nunca mais quer falar comigo enquanto estiver contigo.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti culpa, raiva e um vazio enorme.
Os meses passaram e Dona Emília manteve-se afastada. O Luís ficou mais fechado em si mesmo. A nossa relação tornou-se tensa, cheia de silêncios e pequenas discussões por coisas sem importância.
Um dia, encontrei uma carta da Dona Emília na caixa do correio:
“Mariana,
Nunca pensei que fosses capaz disto. Sempre te tratei como uma filha e agora vejo que só pensas em ti. Espero que um dia percebas o mal que fizeste à nossa família.
Emília”
Fiquei horas a olhar para aquela carta. Será que tinha sido egoísta? Será que devia ter cedido?
O Luís acabou por me pedir um tempo. Disse que precisava de pensar na vida dele, na mãe dele…
Fiquei sozinha no apartamento do meu pai, rodeada de memórias e dúvidas.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena lutar por aquilo que era meu? Ou perdi tudo por medo de perder um pedaço do passado?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Até onde iriam por amor… ou por vocês próprios?