Entre Quatro Paredes: O Peso dos Silêncios e das Palavras
— Eu só tenho um filho. Tu é que tens quatro! — gritou o Miguel, com a voz embargada de raiva e cansaço, enquanto batia com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, misturando-se com o choro abafado da Leonor, a mais nova, que se escondia atrás da porta da sala.
Por um instante, o tempo parou. Senti o sangue gelar-me nas veias. Olhei para ele, olhos nos olhos, à espera de um sinal de arrependimento, mas só encontrei desprezo e exaustão. O cheiro do café queimado pairava no ar, misturado com o aroma agridoce da sopa que ninguém ia comer naquela noite.
— Como é que consegues dizer isso? — perguntei, a voz a tremer. — Achas mesmo que não são teus filhos? Depois de tudo o que passámos?
Miguel desviou o olhar. Pegou no casaco pendurado na cadeira e saiu sem dizer mais nada. O som da porta a bater foi como um ponto final numa frase que eu nunca quis escrever.
Fiquei ali, parada, a olhar para os pratos vazios na mesa. Os meus filhos — Simão, Tomás, Matilde e Leonor — estavam espalhados pela casa, cada um a lidar à sua maneira com o caos que se instalara entre nós. O Simão, o mais velho, já tinha 17 anos e passava os dias fechado no quarto, ausente até quando estava presente. O Tomás era o pacificador, sempre a tentar colar os cacos da família. A Matilde era rebelde, e a Leonor… a Leonor só queria colo.
A verdade é que só o Simão era filho biológico do Miguel. Os outros três eram filhos do meu primeiro casamento com o Rui, que morreu num acidente de mota há dez anos. Quando conheci o Miguel, ele sabia da minha história. Sabia que vinha com um pacote completo: três crianças assustadas e uma mulher cheia de cicatrizes. Ele dizia sempre: “Somos uma família.” E eu acreditava.
Mas os anos foram duros. O desemprego do Miguel, as contas por pagar, as discussões sobre quem devia buscar as crianças à escola ou quem ficava em casa quando estavam doentes. Pequenas coisas que se foram acumulando até se tornarem montanhas intransponíveis.
Naquela noite, depois de ele sair, sentei-me no chão da cozinha e chorei como já não chorava há anos. Senti-me sozinha como nunca antes. Lembrei-me do Rui — do sorriso dele, da forma como me fazia sentir segura mesmo quando tudo à nossa volta era incerto. E pensei: “Será que alguma vez fui justa com o Miguel? Será que lhe pedi demais?”
No dia seguinte, Miguel não voltou para casa. Liguei-lhe dezenas de vezes; nenhuma resposta. As crianças perguntavam por ele e eu inventava desculpas: “O pai foi trabalhar cedo”, “O pai está cansado”. Mas eles sabiam. As crianças sentem tudo.
Uma semana depois, recebi uma mensagem dele: “Precisamos falar.”
Encontrámo-nos num café perto do tribunal. Ele estava magro, olheiras fundas e um olhar perdido.
— Não aguento mais — disse ele, sem rodeios. — Sinto-me sufocado nesta casa. Sinto que nunca fui pai daqueles miúdos. Só ao Simão… E mesmo assim…
— Mas tu disseste que éramos uma família! — interrompi-o, sentindo a raiva a crescer dentro de mim.
— Disse porque queria acreditar nisso. Mas não consigo. Não sou capaz de amar os outros como amo o Simão. E tu… tu nunca deixaste de amar o Rui.
As palavras dele foram facas afiadas no meu peito. Quis gritar-lhe que estava errado, que eu tinha dado tudo por aquela família. Mas fiquei calada. Porque talvez ele tivesse razão.
Voltámos para casa em silêncio. Nos dias seguintes, começámos a falar sobre separação. Sobre guarda partilhada do Simão. Sobre como explicar aos outros três que o Miguel ia embora.
A Matilde foi a primeira a explodir:
— Ele nunca gostou de nós! Sempre fomos um estorvo!
O Tomás chorou baixinho no quarto durante horas. A Leonor agarrou-se a mim e não me largou mais.
Os meus pais tentaram ajudar:
— Filha, tens de ser forte pelos teus filhos — dizia a minha mãe, enquanto me fazia chá de camomila na cozinha onde cresci.
O meu pai era mais duro:
— Esse Miguel nunca foi homem para ti. Devias ter visto logo.
Mas eu sabia que não era assim tão simples. O Miguel tentou ser pai daqueles miúdos. Tentou mesmo. Mas às vezes tentar não chega.
Os meses seguintes foram um turbilhão de papéis, advogados e lágrimas escondidas no banho para não assustar as crianças. O Simão começou a sair à noite sem avisar; a Matilde faltava às aulas; o Tomás fechou-se ainda mais; a Leonor começou a fazer xixi na cama outra vez.
Uma noite, depois de todos estarem a dormir, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros e olhei para as luzes da cidade ao longe. Senti-me pequena e perdida.
Lembrei-me do dia em que conheci o Rui na festa dos Santos Populares em Lisboa; do cheiro das sardinhas assadas e das gargalhadas fáceis; do dia em que soube que estava grávida do Simão; do acidente; do funeral; do vazio imenso que ficou.
Depois lembrei-me do Miguel: do primeiro beijo à porta do cinema São Jorge; das noites em claro com bebés febris; das férias em Vila Nova de Milfontes quando todos rimos juntos pela primeira vez.
Perguntei-me se alguma vez fui realmente feliz ou se andei sempre à procura de colar pedaços partidos.
Um dia, ao buscar a Leonor ao infantário, encontrei a educadora à porta:
— A Leonor anda muito triste — disse ela baixinho. — Tem desenhado muitos corações partidos…
Senti uma culpa esmagadora. Tentei compensar com mimos e presentes baratos comprados no supermercado ao fim do mês.
O tempo foi passando e fomos aprendendo a viver sem o Miguel. O Simão fez 18 anos e foi viver com o pai durante uns tempos — ou melhor, com o homem que sempre achou ser seu pai verdadeiro. A Matilde começou terapia; o Tomás apaixonou-se pela música e passava horas ao piano emprestado pela vizinha do terceiro andar; a Leonor voltou a sorrir devagarinho.
Eu? Voltei à universidade à noite para acabar o curso de Serviço Social que tinha deixado em suspenso há anos. Fiz novas amigas — mulheres como eu, cheias de histórias por contar e feridas por sarar.
Às vezes cruzo-me com o Miguel na rua quando vai buscar o Simão para almoçar aos domingos. Cumprimentamo-nos com um aceno tímido e um sorriso triste.
Ainda dói? Dói sempre um pouco. Mas aprendi que as famílias não são feitas só de sangue ou promessas sussurradas ao ouvido numa noite quente de verão. São feitas de escolhas diárias — algumas acertadas, outras nem tanto.
E agora pergunto-me: será possível reconstruir uma vida depois de tantas perdas? Ou será que andamos todos apenas a tentar sobreviver aos nossos próprios naufrágios?
E vocês? Já sentiram este peso dos silêncios e das palavras ditas no calor do momento? Como se volta a acreditar no amor depois disso?