Entre Quatro Paredes: O Peso das Memórias

— Mãe, não podes continuar assim. — A voz do Ricardo ecoa pela sala, carregada de preocupação e impaciência. Sinto o peso do seu olhar, mas não consigo encará-lo. Os meus dedos brincam nervosamente com a aliança que nunca tirei desde que o António morreu.

Quarenta anos. Quarenta anos entre estas paredes de betão em Chelas, paredes que já ouviram risos de criança, discussões de casal, choros abafados e silêncios pesados. Aqui criei o Ricardo, aqui perdi o António. Aqui aprendi a viver sozinha, mesmo quando a solidão me parecia insuportável.

— Não percebes, Ricardo? — A minha voz sai mais fraca do que queria. — Cada móvel, cada fotografia… tudo tem uma história. Como é que se deixa tudo para trás?

Ele suspira e senta-se ao meu lado no sofá gasto. — Eu entendo, mãe. Mas tu não tens de estar sozinha. No Porto tens-me a mim, à Sofia, aos miúdos…

O Porto. Uma cidade bonita, dizem. Mas para mim é só um lugar estranho onde tudo seria novo e assustador. Aqui conheço cada vizinho, cada loja, até os sons do prédio me são familiares. O cheiro do café da Dona Lurdes pela manhã, o barulho dos miúdos a brincar no pátio…

— E se eu não me adaptar? — pergunto, quase num sussurro.

Ricardo pega na minha mão. — Vais adaptar-te. Vais ver que sim. E vais ter companhia.

Mas companhia não é o mesmo que pertença. Não é o mesmo que sentir que se tem raízes.

Lembro-me da primeira noite neste apartamento. Eu e o António ainda jovens, cheios de sonhos e planos. O Ricardo ainda nem era nascido. Tínhamos comprado móveis em segunda mão e pintado as paredes juntos. Rimos tanto quando entornámos tinta azul no chão da cozinha…

— Mãe? — Ricardo interrompe as minhas memórias. — Precisas de pensar no teu futuro.

Futuro? Aos 68 anos? O meu futuro está todo atrás de mim, penso. Mas não digo nada.

Naquela noite, depois de o Ricardo ir embora, percorro a casa em silêncio. Passo os dedos pelas lombadas dos livros do António, ainda alinhados na estante como ele gostava. Sento-me na cama onde dormimos juntos durante trinta e dois anos. O cheiro dele já se foi há muito tempo, mas fecho os olhos e quase consigo senti-lo ao meu lado.

O telefone toca. É a minha irmã, Teresa.

— Então, já decidiste? — pergunta ela sem rodeios.

— Não sei… Não consigo imaginar-me noutro sítio.

— Mas também não podes continuar aí sozinha para sempre! — A voz dela é dura, mas sei que é preocupação.

— E se eu for e não gostar? E se eles se fartarem de mim?

— Oh Maria… — Ela suspira. — O Ricardo adora-te. E tu precisas de companhia.

Desligo e fico a olhar para a parede onde está pendurada a fotografia do casamento. Eu de branco, António de fato escuro, ambos a sorrir como se nada pudesse correr mal.

No dia seguinte, a campainha toca cedo demais para um sábado. É a Dona Lurdes com um prato de arroz doce.

— Ouvi dizer que vai mudar-se para o Porto! — diz ela com um sorriso triste.

— Ainda não decidi…

Ela senta-se à mesa comigo sem pedir licença.

— Sabe, quando o meu Manel morreu eu pensei em ir viver com a minha filha para Setúbal. Mas depois percebi que aqui era onde eu pertencia. Cada um sabe de si, Maria.

Ficamos em silêncio a comer arroz doce. Ouvem-se risos vindos do pátio.

À tarde, Ricardo liga outra vez.

— Mãe, já viste os apartamentos que te mostrei?

— Vi… São bonitos.

— Então? O que achas?

— Não sei…

Ele perde a paciência.

— Mãe! Não podes continuar aí presa ao passado! O pai já não está cá! Eu preciso de saber que estás bem!

Choro depois de desligar. Sinto-me egoísta por não conseguir dar-lhe essa paz de espírito. Mas também me sinto traída pela rapidez com que ele quer fechar este capítulo da minha vida.

Na semana seguinte começo a empacotar algumas coisas. Fotografias antigas, cartas do António, brinquedos do Ricardo quando era pequeno. Cada objeto é uma ferida aberta.

Uma noite sonho com o António. Ele está sentado à mesa da cozinha, a ler o jornal como sempre fazia ao domingo de manhã.

— Vai com o nosso filho — diz ele no sonho. — Não tenhas medo.

Acordo a chorar.

No dia seguinte decido visitar o Porto com o Ricardo. Ele mostra-me o apartamento novo: moderno, luminoso, com vista para o rio Douro. Sofia recebe-me com um abraço caloroso e os netos saltam para o meu colo como se nunca me tivessem visto antes.

Mas à noite, sozinha no quarto de hóspedes, sinto-me deslocada. O silêncio é diferente do silêncio da minha casa em Chelas. Aqui não há memórias nas paredes.

Quando volto a Lisboa encontro a Teresa à minha espera à porta do prédio.

— Então?

— Não sei… — respondo outra vez.

Ela abraça-me e diz baixinho:

— Às vezes temos de deixar ir para podermos viver outra vez.

Passam-se dias sem conseguir decidir-me. O Ricardo liga todos os dias; ora suplica, ora zanga-se comigo por ser tão teimosa.

Uma tarde ouço uma discussão no prédio: a vizinha do 3º esquerdo está a gritar com o marido outra vez. Sorrio ao pensar como tudo muda e tudo fica igual ao mesmo tempo.

Recebo uma carta do condomínio: vão aumentar as quotas porque há infiltrações na garagem e ninguém quer pagar as obras. Mais um problema para resolver sozinha.

Sento-me na varanda ao fim da tarde e olho para os prédios à volta, todos iguais mas todos diferentes por dentro. Penso em todas as vidas que aqui se cruzam sem nunca se tocarem verdadeiramente.

Finalmente tomo uma decisão: vou vender o apartamento e mudar-me para o Porto. Mas antes disso quero despedir-me deste lugar como deve ser.

Convido os vizinhos mais próximos para um jantar simples: arroz de pato e vinho tinto barato. Rimos das histórias antigas, choramos pelas perdas partilhadas.

Na última noite na casa vazia sento-me no chão da sala com uma chávena de chá nas mãos e falo baixinho para as paredes:

— Obrigada por tudo.

No comboio para o Porto olho pela janela e vejo Lisboa a desaparecer ao longe. Sinto um nó na garganta mas também uma estranha leveza no peito.

Chego ao Porto e sou recebida com abraços apertados dos netos e um sorriso emocionado do Ricardo.

À noite, sozinha no novo quarto ainda sem memórias nas paredes, pergunto-me:

Será possível construir novas raízes quando as antigas ainda doem tanto? Quantos de nós já tiveram de escolher entre guardar as memórias ou arriscar um novo começo?