Entre Quatro Paredes: O Dia em que a Minha Sogra Trouxe o Namorado para Casa

— Não acredito que ela fez isto outra vez! — pensei, apertando o pano da loiça com tanta força que quase o rasguei. O som da porta a abrir ecoou pelo corredor estreito do nosso T2 em Benfica, e logo ouvi a voz da minha sogra, Dona Lurdes, a anunciar-se como se fosse dona da casa.

— Olá, meus queridos! Espero que não se importem, trouxe cá o António para jantar connosco! — disse ela, com aquele tom de quem nunca pede licença para nada.

O António, um senhor de bigode farto e sorriso tímido, entrou atrás dela, tropeçando no tapete da entrada. O meu marido, Rui, largou o comando da televisão e olhou para mim com olhos de quem pede desculpa sem dizer palavra. A nossa filha, Matilde, de apenas seis anos, correu para o quarto, já habituada à confusão que a avó trazia consigo.

— Boa noite, Dona Lurdes. Boa noite, senhor António — disse eu, tentando manter a voz firme. Por dentro, sentia-me a ferver. O nosso apartamento já era pequeno para três adultos e uma criança; agora, tínhamos mais um hóspede, sem aviso, sem preparação, sem respeito pelo nosso espaço.

A cozinha tornou-se um campo de batalha silencioso. Enquanto cortava cebolas para o jantar, ouvi Dona Lurdes a rir alto na sala, contando histórias do tempo em que trabalhava na Caixa Geral de Depósitos. O António ria-se nervosamente, tentando acompanhar o ritmo dela. O Rui aproximou-se de mim, baixinho:

— Desculpa, amor. Ela não me disse nada. Só me ligou há meia hora a dizer que vinha cá jantar…

— E achaste normal? — sussurrei, tentando não perder o controlo. — Achaste normal ela trazer um estranho para dentro da nossa casa?

— Não sei o que fazer… Ela não ouve ninguém…

O jantar foi um desfile de pequenas humilhações. Dona Lurdes serviu-se primeiro, criticou o arroz (“um bocadinho seco, não achas, António?”), perguntou ao Rui quando é que ele ia arranjar um emprego melhor (“a tua prima Carla já está a ganhar mais do que tu!”) e ainda teve tempo para perguntar à Matilde se já sabia ler (“com seis anos eu já lia jornais!”).

O António tentava ser simpático, mas percebia-se que estava desconfortável. A certa altura, perguntou-me:

— Então, Ana, trabalha onde?

— Sou professora primária — respondi, tentando sorrir.

— Ah! Isso é bonito… Mas deve ser difícil com tantos miúdos malcriados hoje em dia…

— Não são todos malcriados — respondi, sentindo o sangue ferver outra vez. — Alguns só precisam de atenção e respeito.

O olhar do António fugiu para o prato. Dona Lurdes não percebeu a indireta e continuou a falar como se nada fosse. Quando finalmente se foram embora para o quarto dela — sim, porque desde que ficou viúva há dois anos, Dona Lurdes veio viver connosco e ficou com o quarto mais espaçoso — eu e o Rui ficámos na cozinha, em silêncio.

— Não aguento mais isto — disse eu, finalmente. — Não aguento viver assim, sem privacidade, sem respeito. Ela não percebe que esta casa não é só dela?

O Rui passou as mãos pela cara, cansado.

— Eu sei… Mas ela não tem para onde ir. E agora com esse António…

— O António não é o problema! O problema é ela nunca perguntar nada, nunca respeitar os nossos limites! — gritei, baixinho, para não acordar a Matilde.

Naquela noite, não dormi. Fiquei a ouvir os risos abafados vindos do quarto da Dona Lurdes. Senti-me uma estranha na minha própria casa. Lembrei-me de quando eu e o Rui comprámos aquele apartamento, cheios de sonhos. Imaginávamos jantares tranquilos, domingos preguiçosos no sofá, a Matilde a brincar no tapete da sala. Nunca pensei que a minha sogra fosse ocupar tanto espaço — não só físico, mas emocional.

No dia seguinte, tentei falar com ela. Esperei que o António saísse para o trabalho e bati à porta do quarto dela.

— Dona Lurdes, podemos conversar?

Ela olhou-me com aquele ar de superioridade que sempre teve.

— Diz lá, Ana.

— Eu compreendo que precise de companhia, mas… aqui em casa já somos muitos. Não é fácil gerir tudo. Gostava que nos avisasse antes de trazer alguém. E… talvez fosse melhor o António não dormir cá tantas vezes.

Ela bufou.

— Olha, Ana, eu já vivi muito nesta vida. Já perdi um marido, já criei dois filhos sozinha. Agora que encontrei alguém que me faz feliz, não vou pedir licença a ninguém para viver. Se não gostas, paciência. A casa é do Rui também.

Senti um nó na garganta. Queria gritar, queria chorar, queria fugir dali. Mas limitei-me a sair do quarto e fechar a porta atrás de mim.

Os dias seguintes foram um inferno. Dona Lurdes fazia questão de mostrar que estava magoada. Não falava comigo, mas falava alto com o Rui sobre como “há pessoas nesta casa que não sabem o que é família”. O António continuava a aparecer, cada vez mais à vontade. A Matilde começou a perguntar porque é que a avó estava sempre zangada comigo.

Uma noite, depois de mais uma discussão, sentei-me na varanda minúscula e chorei. Senti-me sozinha, incompreendida. O Rui tentou consolar-me, mas eu sabia que ele estava dividido entre mim e a mãe. A nossa relação começou a sofrer. Discutíamos por tudo e por nada. A Matilde começou a ter pesadelos.

Foi então que percebi: ou eu fazia alguma coisa, ou ia perder tudo. Procurei ajuda junto de uma amiga psicóloga, a Joana. Ela ouviu-me com atenção e disse:

— Ana, tu tens direito ao teu espaço. Tens direito a impor limites. Não é egoísmo, é sobrevivência. Fala com o Rui. Procurem uma solução juntos. Talvez seja altura de a Dona Lurdes procurar outra casa, ou pelo menos perceber que não pode invadir a vossa vida assim.

Naquela noite, sentei-me com o Rui e falei tudo o que tinha guardado durante meses.

— Eu amo-te, Rui. Mas não posso continuar assim. Ou a tua mãe percebe que esta casa é de todos, ou eu vou ter de sair. Não quero que a Matilde cresça neste ambiente.

O Rui chorou. Disse que não sabia como lidar com a mãe, que se sentia culpado por tudo. Mas prometeu que ia falar com ela.

No dia seguinte, Rui e Dona Lurdes tiveram uma conversa longa. Não ouvi tudo, mas percebi que foi dura. No final, Dona Lurdes saiu do quarto com os olhos vermelhos e foi para casa da irmã passar uns dias. O António deixou de aparecer.

A casa ficou mais silenciosa. Eu e o Rui começámos a reconstruir a nossa relação. A Matilde voltou a sorrir. Mas ficou uma ferida aberta. Dona Lurdes voltou passado umas semanas, mais distante, mais fria. Ainda não perdoou o que aconteceu.

Hoje, olho para trás e pergunto-me: até onde devemos ir por amor à família? Onde acaba o dever e começa o direito à felicidade? Será que algum dia vamos conseguir ser uma família de verdade, sem mágoas nem ressentimentos? E vocês, o que fariam no meu lugar?