Entre Prateleiras e Segredos: O Dia em que Tudo Mudou no Continente
— Mãe, por favor, não faças isto agora! — sussurrou a minha irmã, Joana, com os olhos arregalados, enquanto eu tentava equilibrar o carrinho do bebé e a lista de compras.
O pequeno Tomás, com apenas seis meses, olhava para mim com aqueles olhos grandes e curiosos, sem perceber o turbilhão de emoções que me atravessava. O supermercado Continente estava cheio naquele sábado à tarde, mas para mim, tudo parecia em câmara lenta. As luzes fluorescentes, o cheiro a pão quente, o som distante dos anúncios nos altifalantes — tudo se misturava com a minha ansiedade.
— Joana, não aguento mais — respondi, tentando manter a voz baixa. — Ele não pode continuar a fingir que nada aconteceu.
Ela olhou para mim, suplicante. — Por favor, pelo Tomás…
Mas já era tarde. O meu pai apareceu no corredor dos iogurtes, com aquele ar cansado e distante que sempre teve desde que a mãe nos deixou. Parou ao ver-nos. O silêncio entre nós era ensurdecedor.
— Olá, filha — disse ele finalmente, tentando sorrir.
Senti uma raiva antiga subir-me à garganta. — Olá? É só isso que tens para dizer depois de seis meses sem sequer perguntar pelo teu neto?
O Tomás começou a choramingar. Peguei nele ao colo, sentindo o calor do seu corpinho contra o meu peito. O meu pai olhou para ele como se visse um estranho.
— Eu… tenho tido muito trabalho — murmurou.
— Trabalho? — ri-me, amarga. — Sempre foi essa a tua desculpa. Para tudo. Para não estares presente quando a mãe adoeceu. Para não vires ao hospital quando o Tomás nasceu prematuro. Para não me ligares quando precisei de ti.
As pessoas passavam por nós, algumas lançando olhares curiosos. Senti-me exposta, mas já não conseguia parar.
Joana tentou intervir. — Por favor, vamos falar disto em casa…
Mas eu estava farta de silêncios e de conversas adiadas. — Não! É aqui mesmo! Porque é sempre aqui, nos sítios mais banais, que a vida acontece. Não é?
O meu pai baixou os olhos. — Eu sei que falhei convosco. Mas não sei como voltar atrás.
O Tomás agarrou o meu dedo com força. Senti as lágrimas a ameaçarem cair.
— Não quero que ele cresça sem avô — disse eu, a voz embargada. — Mas também não quero continuar a fingir que está tudo bem quando não está.
Ele deu um passo hesitante na nossa direção. — Posso pegar nele?
Hesitei. O Tomás olhou para mim e depois para o avô, como se sentisse a tensão no ar. Finalmente, entreguei-o ao meu pai. Vi as mãos dele tremerem enquanto segurava o neto pela primeira vez.
— Olá, pequenino… — murmurou ele, com uma voz tão suave que quase não reconheci.
Nesse momento, uma senhora idosa parou ao nosso lado e sorriu para nós. — Que bebé tão bonito! Devem estar muito orgulhosos.
Senti um nó na garganta. Orgulho? Era isso que sentia? Ou era tristeza pelo tempo perdido?
O meu pai devolveu-me o Tomás com um olhar cheio de lágrimas não choradas.
— Desculpa, filha. Sei que não posso apagar o passado. Mas quero tentar ser melhor daqui para a frente.
Joana abraçou-me de lado. Pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez fosse possível recomeçar.
Saímos do supermercado em silêncio, cada uma perdida nos seus pensamentos. O Tomás adormeceu no carrinho, alheio ao drama dos adultos.
À noite, enquanto embalava o meu filho no quarto pequeno do nosso apartamento em Lisboa, pensei em tudo o que tinha acontecido naquele dia banal e extraordinário.
Quantas famílias vivem assim? Presas entre silêncios e mágoas antigas? Será possível perdoar verdadeiramente e recomeçar? Ou estaremos todos condenados a repetir os erros dos nossos pais?
E vocês? Já sentiram este peso no peito? O que fariam no meu lugar?