Entre Paredes e Silêncios: O Regresso de Miguel

“Não podes simplesmente aparecer aqui e exigir metade de tudo, Miguel!” A minha voz ecoou pela sala, trémula, misturada com raiva e uma tristeza antiga que nunca me abandonou. O cheiro a café frio pairava no ar, misturado com o perfume amadeirado dos móveis antigos do nosso pai. Miguel encostou-se à ombreira da porta, braços cruzados, olhar duro. “É a lei, Inês. O pai morreu sem testamento. Tenho direito à minha parte.”

Durante anos, fui só eu e o pai nesta casa em Vila Nova de Gaia. A mãe foi-se cedo demais, e Miguel fugiu para Lisboa assim que pôde, deixando-me sozinha com as rotinas, as contas e, mais tarde, com a doença do nosso pai. Lembro-me das noites em que o ouvia tossir no quarto ao lado, do medo de o perder, da responsabilidade esmagadora que me caía nos ombros. Nunca me passou pela cabeça abandonar tudo como ele fez.

Miguel não veio ao funeral. Nem uma chamada. Só soube da morte do pai porque a tia Rosa lhe ligou. Agora estava ali, a exigir metade da casa onde nunca mais pôs os pés desde os seus vinte anos. “Sabes quantas vezes o pai perguntou por ti? Sabes quantas noites chorei sozinha nesta casa?”

Ele desviou o olhar, mas manteve-se firme. “Não vim discutir o passado. Vim resolver isto.”

Sentei-me na cadeira da cozinha, as mãos a tremerem. O relógio de parede marcava as três da tarde, mas o tempo parecia suspenso. “E se eu não quiser vender? Esta casa é tudo o que me resta dele.”

Miguel suspirou, passando a mão pelo cabelo escuro já salpicado de cinzento. “Inês, eu também perdi um pai. Só quero o que é meu por direito.”

A raiva cresceu dentro de mim como uma onda prestes a rebentar. “Direito? Onde estavas quando ele precisou de ti? Quando eu precisei?”

O silêncio caiu entre nós como um manto pesado. Lá fora, ouvia-se o som distante das gaivotas e o burburinho da vizinhança. Por um momento, desejei que tudo isto fosse apenas um pesadelo.

Miguel aproximou-se da mesa e sentou-se à minha frente. “Olha, Inês… Eu sei que falhei convosco. Mas também tenho contas para pagar, uma filha pequena… Não posso simplesmente abdicar disto.”

As palavras dele feriram-me mais do que eu queria admitir. Lembrei-me da pequena Leonor, a sobrinha que só conhecia por fotografias enviadas pela tia Rosa. “E achas justo tirares-me tudo? Esta casa é o meu lar.”

Ele baixou os olhos. “Talvez possamos encontrar uma solução. Mas não posso sair daqui de mãos vazias.”

Levantei-me abruptamente, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. “Preciso de ar.” Saí para o quintal onde tantas vezes brinquei em criança. O cheiro a terra molhada trouxe-me memórias do pai a cuidar das roseiras, das tardes de verão em que nos sentávamos juntos a ver o pôr-do-sol sobre o Douro.

Senti um aperto no peito. Como é possível que tudo se resuma agora a números e papéis? O Miguel que eu conhecia era meu cúmplice nas traquinices, meu protetor contra os medos noturnos. Agora era um estranho.

Mais tarde, naquela noite, sentei-me no quarto do pai. As paredes estavam cobertas de fotografias antigas: nós os dois pequenos na praia da Granja, o pai sorridente com um chapéu ridículo, a mãe ainda viva e cheia de vida. Peguei numa moldura e apertei-a contra o peito.

Miguel entrou sem bater. “Desculpa ter sido tão frio hoje.”

Olhei para ele através do espelho antigo. “Não sei se consigo perdoar-te.”

Ele sentou-se na beira da cama. “Eu também não me perdoo.”

Ficámos ali em silêncio durante longos minutos. Senti vontade de lhe contar tudo: as noites em claro, as discussões com os médicos, o medo constante de perder tudo. Mas as palavras ficaram presas na garganta.

No dia seguinte, fomos ao advogado juntos. O processo era claro: sem testamento, a casa seria dividida igualmente. O advogado sugeriu que eu poderia comprar a parte do Miguel ou então venderíamos tudo e dividiríamos o dinheiro.

“Não tenho dinheiro para te pagar,” disse-lhe à saída do escritório.

Ele encolheu os ombros. “Então vamos ter de vender.”

A notícia espalhou-se pela família como fogo em mato seco. A tia Rosa ligou-me aos gritos: “Como é possível? Vais deixar vender a casa dos teus pais?” O primo João ofereceu-se para me emprestar dinheiro, mas sabia que nunca conseguiria pagar-lhe.

As semanas seguintes foram um tormento. Os vizinhos olhavam-me com pena; alguns até cochichavam quando passava na rua. Senti-me traída pelo próprio sangue.

Uma noite, depois de mais uma discussão acesa com Miguel sobre valores e compradores potenciais, sentei-me sozinha na sala escura. Oiço ainda as palavras dele: “Não é só dinheiro para mim, Inês. É também uma forma de fechar este capítulo.”

Chorei até adormecer no sofá.

No dia da visita dos compradores, percorri cada divisão da casa como quem se despede de um ente querido. Toquei nas paredes, fechei os olhos e ouvi as vozes do passado: risos infantis, discussões à mesa, canções desafinadas do pai ao domingo.

Quando os compradores saíram, Miguel ficou parado à porta da sala. “Se quiseres mesmo ficar com a casa… posso esperar uns meses até arranjares maneira.”

Olhei para ele com surpresa e desconfiança. “Porquê agora?”

Ele deu um meio sorriso triste. “Porque percebi que esta casa é mais tua do que minha.”

Abracei-o pela primeira vez em anos. Chorámos juntos – não só pelo pai ou pela casa, mas por tudo o que perdemos pelo caminho.

No fim, consegui um empréstimo pequeno graças ao primo João e à boa vontade do banco local – não foi fácil nem rápido, mas consegui comprar a parte do Miguel.

Hoje vivo aqui sozinha, rodeada de memórias e silêncios pesados. Às vezes pergunto-me se valeu a pena lutar tanto por estas paredes ou se devia ter seguido em frente como ele fez.

Mas afinal… O que é realmente uma família? São as paredes onde crescemos ou as pessoas que escolhemos perdoar?