Entre Paredes e Silêncios: O Dilema da Casa do Meu Pai

— Não vou vender a casa, Mariana! — a voz do meu pai ecoou pela sala, carregada de uma teimosia antiga, dessas que não se desfazem com argumentos ou lágrimas.

Eu estava sentada no sofá, as mãos trêmulas sobre os joelhos, tentando encontrar palavras que não soassem como acusações. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas ninguém parecia cansado o suficiente para desistir daquela discussão.

— Pai, o Pedro não quer morar aqui sozinho contigo. Ele já disse mil vezes — tentei, olhando para o meu irmão, que mantinha os olhos fixos no chão, como se ali encontrasse alguma saída.

Pedro bufou, cruzando os braços. — Não é só isso, Mariana. Eu… eu não consigo viver aqui. Esta casa tem memórias demais. E tu sabes disso.

Meu pai virou-se para ele, olhos marejados de raiva e mágoa. — Memórias? É por causa da tua mãe? Achas que eu também não sinto falta dela? Mas esta casa é tudo o que me resta dela!

O silêncio caiu pesado. Eu sentia o peso das paredes, das fotografias antigas penduradas no corredor, dos móveis gastos pelo tempo e pelas discussões. Cresci ali, entre risos e gritos, entre festas de aniversário e noites de tempestade. Mas agora aquela casa parecia um campo minado.

Meu marido, Miguel, estava encostado na porta da cozinha, tentando ser invisível. Ele sabia que qualquer palavra sua seria vista como intromissão. Mas eu sabia que ele já estava cansado de viver no nosso pequeno apartamento alugado, ouvindo as discussões da vizinha de cima e contando moedas para pagar as contas.

— Mariana, não podemos continuar assim — ele sussurrou para mim mais tarde, quando já estávamos sozinhos no quarto de hóspedes. — O teu pai não vai mudar de ideias. O Pedro não vai ceder. E nós… nós estamos a adiar a nossa vida.

Olhei para ele, sentindo uma mistura de culpa e revolta. — Achas que eu não sei? Mas o que queres que eu faça? Deixe o meu pai sozinho? Obrigue o Pedro a viver aqui contra vontade?

Miguel suspirou, passando a mão pelo cabelo. — Talvez esteja na altura de pensarmos em nós próprios. Já fizeste tanto por eles…

Mas como pensar em mim própria quando tudo à minha volta parecia desmoronar? Quando a minha mãe morreu há três anos, prometi a mim mesma que manteria a família unida. Que cuidaria do meu pai, que ajudaria o Pedro a superar a dor. Mas agora era como se cada um estivesse numa ilha diferente, separados por mágoas antigas e expectativas impossíveis.

No dia seguinte, tentei falar com o Pedro a sós. Encontrámo-nos no café da esquina, onde costumávamos ir quando éramos crianças.

— Não quero que fiques zangado comigo — comecei, mexendo distraidamente no café.

Ele sorriu sem alegria. — Não estou zangado contigo. Só estou cansado. Cansado de sentir que tenho de escolher entre a minha vida e o passado do pai.

— E se tentássemos convencer o pai a mudar-se para um apartamento menor? Podíamos vender a casa e dividir o dinheiro…

Pedro abanou a cabeça. — Ele nunca vai aceitar isso. Para ele, sair daquela casa é como admitir que a mãe morreu mesmo. E eu… eu não consigo viver ali todos os dias, rodeado de tudo o que já não existe.

Senti uma pontada no peito. Era verdade: cada canto daquela casa era um lembrete do que perdemos. Mas também era tudo o que tínhamos.

As semanas passaram e as discussões tornaram-se rotina. O meu pai recusava-se a ouvir qualquer proposta. O Pedro afastava-se cada vez mais, passando mais tempo fora de casa ou na casa da namorada. Eu sentia-me presa entre dois mundos: o da filha responsável e o da mulher que queria construir uma vida nova com o Miguel.

Até que um dia, ao chegar ao apartamento depois do trabalho, encontrei Miguel sentado à mesa da cozinha com uma expressão grave.

— Recebi uma proposta de trabalho em Braga — disse ele sem rodeios. — É uma boa oportunidade… mas teríamos de mudar-nos para lá em dois meses.

O chão pareceu fugir-me dos pés. Braga? Longe do meu pai, longe do Pedro… longe de tudo o que conhecia.

— E tu queres aceitar? — perguntei com a voz embargada.

Ele hesitou antes de responder. — Quero pensar em nós, Mariana. Quero dar-nos uma hipótese de sermos felizes sem este peso constante.

Passei a noite em claro, ouvindo os sons da cidade pela janela aberta. Pensei em todas as vezes em que pus os outros à frente dos meus próprios sonhos. Pensei na minha mãe, no seu sorriso cansado nos últimos meses de vida, nas suas palavras: “Não te esqueças de ti mesma, filha”.

No dia seguinte, fui à casa do meu pai. Encontrei-o sentado na sala, olhando para uma fotografia antiga da família.

— Pai… — comecei, sentando-me ao seu lado — Eu amo-te muito. Mas não posso continuar assim. Preciso de pensar em mim também.

Ele olhou para mim com olhos vermelhos de cansaço. — Vais deixar-me?

Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto. — Não é deixar-te… É dar-me uma oportunidade de ser feliz também. Vou mudar-me para Braga com o Miguel.

O silêncio foi absoluto por longos minutos. Depois ele pousou a fotografia no colo e murmurou:

— Sempre achei que esta casa nos manteria juntos… Nunca pensei que pudesse ser ela a separar-nos.

Abracei-o com força, sentindo o cheiro familiar do seu casaco velho misturado ao cheiro amargo da despedida.

Nos dias seguintes, as conversas foram poucas e dolorosas. O Pedro ficou furioso quando soube da minha decisão.

— Vais mesmo deixá-lo sozinho? — gritou ao telefone — És sempre tu que resolves tudo! Agora vais fugir?

Chorei muito depois dessa chamada. Mas sabia que era preciso coragem para mudar.

No último dia antes da mudança, voltei à casa da infância uma última vez. Passei pelos corredores silenciosos, toquei nas paredes marcadas por anos de vida e memórias.

Ao sair pela porta, olhei para trás e sussurrei:

— Talvez um dia esta casa volte a ser lar para alguém… Talvez um dia possamos todos perdoar-nos por não sermos perfeitos.

Agora escrevo estas palavras já instalada em Braga, sentindo saudades mas também alívio. Pergunto-me: quantas famílias vivem presas às paredes do passado? Quantos de nós sacrificam a própria felicidade por medo de magoar quem amam?

E vocês? Já tiveram de escolher entre si próprios e a família? Até onde iriam para encontrar paz?