Entre Paredes e Silêncios: O Dia em Que Quiseram Vender a Casa da Minha Vida
“Mãe, vamos vender a casa. Tu podes ir para um apartamento mais pequeno e nós usamos o resto para a entrada da nossa.”
As palavras do meu filho, o Pedro, ecoaram pela sala como um trovão. Senti o chão fugir-me dos pés. Olhei para ele, sentado à minha frente, as mãos entrelaçadas, o olhar fixo no tapete gasto que o avô dele tanto gostava. A Madalena, a mulher dele, nem sequer me olhava nos olhos. Estava ali, mas parecia ausente, como se já tivesse decidido tudo antes de eu sequer abrir a boca.
“Foi a Madalena que te pôs esta ideia na cabeça? Era só o que faltava! Só porque não nos damos bem, não quer dizer que eu tenha de vender a casa. Eu amo esta casa.”
Pedro suspirou, impaciente. “É a nossa casa, mãe. O pai deixou-a para nós. Embora tu digas que foi para ti, ele deixou-a para mim também, o filho dele. Ninguém me pôs nada na cabeça. Só percebi que…”
“Só percebeste que precisas de dinheiro! É sempre isso, não é? Quando as coisas apertam, lembram-se da velha. Mas esta casa… esta casa é tudo o que me resta!”
O silêncio caiu pesado. Lá fora, ouvia-se o sino da igreja da aldeia a marcar as seis da tarde. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma das flores do jardim, aquele jardim que plantei com as minhas próprias mãos quando o Pedro ainda era pequeno.
A Madalena levantou-se, ajeitou a saia e finalmente falou: “Dona Teresa, não é só por nós. Esta casa dá muito trabalho. Está velha, precisa de obras. Não acha que seria melhor para si viver num sítio mais pequeno? Mais fácil de cuidar?”
Olhei para ela com uma raiva contida. “Tu nunca entendeste nada desta família. Achas que isto é só cimento e tijolo? Cada parede tem uma história! Foi aqui que o Pedro deu os primeiros passos, foi aqui que o António morreu… Foi aqui que eu sobrevivi.”
Pedro levantou-se também, aproximou-se de mim e pousou-me uma mão no ombro. “Mãe, não queremos magoar-te. Mas precisamos de pensar no futuro. A Madalena está grávida.”
O mundo parou por um segundo. Grávida? O meu neto…
“E achas que eu não quero conhecer o meu neto? Mas achas mesmo que vender esta casa é a solução? O teu pai revirava-se no túmulo se soubesse disto!”
Pedro afastou-se, visivelmente irritado. “O pai já cá não está! E tu não podes continuar agarrada ao passado. Eu tenho uma família agora. Preciso de pensar neles.”
A discussão continuou noite dentro. Vieram à tona mágoas antigas: a forma como sempre preferi o Pedro à irmã mais nova, a Maria; as discussões com o António sobre dinheiro; as vezes em que fechei os olhos aos problemas do Pedro só porque era homem e herdeiro.
A Maria apareceu mais tarde, chamada pela Madalena por mensagem sem eu saber. Entrou na sala com aquele ar calmo dela, mas os olhos vermelhos denunciavam que já sabia de tudo.
“Mãe… talvez seja mesmo melhor pensares nisso. Eu não quero nada da casa, mas tu não podes continuar aqui sozinha.”
“E tu também? Achas que eu sou um estorvo? Que já não sirvo para nada?”
Ela sentou-se ao meu lado e pegou-me na mão. “Não é isso… Só queremos o melhor para ti.”
Mas eu sabia ler nas entrelinhas: queriam livrar-se do peso da minha velhice, das minhas manias e dos meus silêncios.
Lembrei-me do António, do cheiro do seu tabaco no escritório ao fundo do corredor, das noites em que ficávamos os dois à lareira a ouvir fado na rádio antiga. Lembrei-me do Pedro pequenino a correr pelo quintal atrás das galinhas da vizinha Rosa. Lembrei-me da Maria a chorar porque queria um cão e eu dizia sempre que não havia dinheiro.
A casa era feita dessas memórias todas. Como podia eu vendê-la?
Os dias seguintes foram um tormento. O Pedro ligava todos os dias, insistente. A Madalena mandava mensagens frias: “Já pensou melhor?” A Maria vinha visitar-me mais vezes, mas eu sentia que era só para me convencer.
Uma tarde, sentei-me no banco do jardim e olhei para as roseiras que plantei no ano em que o António morreu. Senti uma solidão tão funda que me faltou o ar.
Na semana seguinte, apareceu cá um senhor da imobiliária com um sorriso falso e um bloco de notas na mão. O Pedro tinha-o chamado sem me avisar.
“Dona Teresa, esta casa vale muito dinheiro! Pode comprar um apartamento novo na cidade e ainda sobra para ajudar os seus filhos.”
Olhei para ele como se fosse um ladrão.
“Esta casa não está à venda.”
O Pedro ficou furioso comigo nesse dia. Gritou-me coisas horríveis: que eu era egoísta, que só pensava em mim, que estava a estragar-lhe a vida.
Fechei-me no quarto e chorei como não chorava desde o funeral do António.
Nessa noite sonhei com o passado: vi o António jovem a pedir-me em casamento no largo da igreja; vi o Pedro bebé ao colo; vi a Maria a dançar sozinha na sala enquanto eu cozinhava; vi-me a mim própria envelhecida, sozinha nesta casa enorme.
No dia seguinte acordei com uma decisão tomada: ia falar com eles todos juntos.
Convidei-os para jantar ao domingo. Fiz arroz de pato como nos velhos tempos.
Sentámo-nos à mesa em silêncio até eu começar:
“Eu sei que querem vender a casa. Sei que acham que é melhor para todos. Mas esta casa é tudo o que me resta do vosso pai e da nossa família. Se vender esta casa, perco-me também.”
O Pedro baixou os olhos. A Madalena olhou para mim sem expressão. A Maria chorava baixinho.
“Mas também sei que vocês têm razão nalgumas coisas. Não posso ficar aqui sozinha para sempre. Talvez possamos encontrar outra solução… Talvez eu possa arrendar uma parte da casa ou arranjar alguém para viver comigo.”
O Pedro levantou-se e abraçou-me pela primeira vez em meses.
“Mãe… desculpa. Eu só queria ajudar.”
A Madalena ficou calada.
No fim da noite, fiquei sozinha na sala escura, rodeada pelas fotografias antigas nas paredes.
Pergunto-me: será que um lar é feito das pessoas ou das memórias? E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre o passado e o futuro?